A descoberta deste poema lindo e significativo sobre Beethoven, ou
melhor, dirigido a Beethoven, por Carlos Drumond de Andrade, me deu um
desejo enorme de falar um pouco sobre o tema: meu compositor predileto e meu
poeta predileto. Encontrei-o na Revista
OSESP, nº 3, de 2013.
Este genial poema de
Carlos Drumond de Andrade constitui uma análise delicada e ao mesmo tempo
profunda do pensamento e da postura de
Beethoven diante da contingência de sua vida, que ele extravasa por meio da
música, colocando nela a razão de resistir e viver, de pertencer a um mundo hostil porém feito de
seres humanos que ele considerava fraternos.
Por isso mesmo, os difíceis caminhos deveriam conduzir à alegria. O exemplo é explícito na Nona Sinfonia, uma das obras máximas da
criação humana em música, cuja escrita foi feita quando o compositor
contabilizava total e absoluta perda de audição e, mergulhado no mais profundo
silêncio, ouvia os sons dentro da cabeça
e do coração, como afirmou. Pois bem, a Nona Sinfonia é extensa e complexa, uma
síntese da essência da visão de mundo de Beethoven, com seus quatro movimentos
que percorrem caminhos difíceis mas termina com o grande movimento coral que canta a Ode à Alegria, do poema homônimo
do poeta alemão Schiller. É um hino à alegria e à fraternidade universal. Esta
peça é considerada o Hino da Humanidade e, não por acaso, foi escolhida como hino da Comunidade Europeia.
Quando foi estreada em 1824, em Viena, o compositor, no palco, de costas
para o público não conseguiu ouvir sequer os aplausos entusiásticos. Só se deu conta quando uma cantora do coro chamou-lhe a atenção. “ Em toda a história da música nenhum músico,
com uma convicção tão profunda, terá concebido sua obra como uma doação e uma
missão a serviço de toda a humanidade.” (Jean & Brigitte Massin, História
da Música Ocidental)
O lema da Revolução
Francesa era o paradigma da vida de Beethoven: Liberdade, Igualdade e
Fraternidade.
No
poema, metáforas e simbolismos misturam a semântica da música com a ética e a
estética de Beethoven, envolvem fatos da
sua vida (os desamores, a cruel surdez)
e o trazem muito naturalmente à modernidade ( computadores, maconheiros, pickup)
coroando a genialidade do, como não poderia deixar de ser, Carlos Drumond de Andrade, O
poeta. Uma possível interpretação:
BEETHOVEN
Carlos Drumond de
Andrade.
Meu caro Luís, o que vens fazer
nesta hora
de antemúsica pelo mundo afora?
Patética,
heroica, pastoral ou trágica,
(referência às obras: Sonata Patética, Sinfonia Heroica e
Sinfonia Patética)
tua
voz é sempre um grito modulado,
um
caminho lunar conduzindo à alegria.
(Sonata ao Luar e o coro da Ode à
Alegria)
Ao
não rumor tiraste a percepção mais
íntima
Do
coração da terra que era o teu.
(não rumor: a surdez)
Urso-
maior uivando a solidão
(foi chamado de urso pelo temperamento
irascível, no fim da vida)
Aberta em cântico: entre mulheres
passando sem amor. Meu rude Luís,
(sem amor: teve vários amores mas não
conseguiu realizar nenhum)
tua imagem assusta na parede,
em medalhão soturno sobre o piano.
(Imagem severa e angustiada em quadros e
bustos colocados tradicionalmente sobre o piano)
Que
tempestade passou em ti e continua
a
devastar-te no limite
( sonata chamada de A Tempestade)
em que a própria morte se socorre
da
vida, e reinstala
o homem na fatalidade de ser homem?
(menção ao Testamento de Heiligenstad
onde Beethoven revela que esteve à beira do suicídio devido à surdez mas foi
salvo pela arte. “Ah, parecia-me impossível deixar o mundo antes de ter dado
tudo o que ainda germinava em mim!”)
Nós,
os surdos, não captamos
o amor doado em sinfonia, a paz
em allegro enérgico sobre o caos,
(sinfonia, forma orquestral; allegro,
indicação de andamento na música)
que nos oferta do fundo
de teu mundo clausurado.
(Mundo clausurado: ausência total de
sons)
Nós,
computadores, não programamos
a
exaltação romântica filtrada
(estilo romântico da sua obra)
em sonatino adágio murmurante.
(Sonatino, de sonatina, forma musical;
adágio, indicação de andamento)
Nós,
guerreiros nucleares, não isolamos
o núcleo de paixão de onde se espraia
pela praia infinita essa abstrata
superação do tempo e do destino
que
é a razão de viver, razão florente
e
grave
Tanto
mais liberto quanto mais
em tua concha não acústica cerrado
livre
da corte, da contingência, do barroco,
erguendo o sentimento à culminância
(A surdez, concha não acústica, isenta-o
de seguir estilos como barroco, e gostos da corte elegendo o sentimento o bem
mais alto)
da divina explosão que purifica
o resíduo mortal, a angústia mísera,
que vens fazer, do longe de dois séculos,
escuro Luís,
Luís luminoso,
em
nosso tempo de compromisso e omisso?
Do
fogo em que te queimaste,
uma faísca resta para incendiar
corações maconhados, sonolentos,
servos da alienação e da aparência?
Quem
comporá a Apassionata do nosso tempo,
( Sonata Apassionata, uma das obras mais
famosa)
Quem removerá as cinzas, despertará a brasa,
Quem reinventará o amor, as penas do amor,
(as penas do amor: sofrimento pelos
amores frustrados)
quem sacudirá os homens do seu torpor?
Boto
no pickup o teu mar de música,
nele
me afogo acima das estrelas.
Nossa, amo Drummond; amo Beethoven. Eu nunca vou esquecer como eu conheci música clássica: minha mãe tinha ganhado um CD do beethoven em uma rifa. Eu era adolescente e coloquei o cd no rádio para ouvir. A primeira música do cd era sonata ao luar. Foi a coisa mais incrível que eu tinha escutado. Acho que Drummont conseguiu captar bem como a música de Beethoven alcança nossos sentimentos mais profundos.Obrigada por divulgar o poema; eu não conhecia.
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