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segunda-feira, 30 de março de 2015

Metáforas e símbolos no folclore da Semana Santa

Ciclo da Semana Santa no Folclore Brasileiro
Tempo simbólico, cheio de “coisas proibidas e coisas que dão sorte!”

Quaresma
É o período  intermediário entre o fim do carnaval na 4ª feira de cinzas e a ressurreição de Cristo no domingo de Páscoa. Para os cristãos são 40 dias de penitência, oração e jejum destinados à preparação para a Páscoa.  Na realidade, 46 dias corridos mas os 6 domingos não contam porque  já são dias santificados.
Quaresma é abreviação da palavra “quadragésima” da frase em latim QUADRAGESIMA  DIE CHRISTUS  PRO NOBIS TRADETUR (No quadragésimo dia Cristo será entregue por nós).

A quaresma surgiu cerca do ano de 350 d.C. quando a Igreja aumentou os  dias de preparação para a Páscoa que eram até então só 3: quinta, sexta e sábado - o Tríduo Pascal.

No imaginário popular, inconscientemente, quaresma é a representação de um tempo simbólico,  tempo de  expiação da culpa da humanidade por ter entregue Jesus à morte – uma ideia construída pela Igreja. A quaresma é repleta de mitos: pode aparecer lobisomem, casamento realizado não dá certo, comer carne vermelha é pecado e outros.

Na quaresma acontece uma notável expressão do catolicismo-folclórico chamada Recomenda de Almas, Encomendação das Almas ou Penitentes. Constitui grupos de pessoas que cumprem um ritual no qual se articulam significados religiosos, mágicos e simbólicos a partir do conceito alma dos mortos  na visão popular. Nas sextas feiras  da quaresma, tarde da noite, no silêncio e  na escuridão, culminando na sexta feira da Paixão, estes grupos percorrem casas, igrejas (fechadas nessa hora), cemitérios, cruzeiros ou capelinhas de beira de estrada, pedindo orações para as almas perdidas, por meio de uma cantoria específica. Geralmente são almas de pessoas que não tiveram morte natural como os assassinados, queimados, os afogados – estes, “as almas das ondas do mar”. Em alguns grupos os componentes, que podem ser homens e mulheres, cobrem o corpo com um lençol branco simbolizando a  mortalha. Quando cantam diante de uma residência, os habitantes não devem acender as luzes, abrir portas ou janelas nem se comunicar com os cantores pois correm o risco de ver as almas  penadas  que os acompanham.
A matriz das Recomendas de Almas está no culto aos mortos presente nos ritos funerários de culturas ancestrais que com o advento do cristianismo  foram reinterpretados de acordo com as normas da Igreja. 
A música vocal é uma harmonia composta de várias vozes, às vezes até sete, em estilo responsorial. E o acompanhamento instrumental é feito com matracas,  algumas vezes com o zumbidor também chamado berra-boi. Este é um pequeno artefato retangular achatado construído de madeira, cerâmica ou pedra que, amarrado na ponta de um barbante e girado no ar sobre a cabeça do executante (um aerofone livre, portanto) produz um som forte, insistente e perturbador. É conhecido desde culturas muito antigas e nos mais diferentes lugares, como Austrália, Europa, África, índios sulamericanos. Curioso é que é sempre proibido às mulheres ouví-los e mais ainda, manuseá-los.
A matraca tem origem antiga, no Oriente, na Índia, China, Japão, Tibet e no meio muçulmano onde substituía as campainhas, proibidas pelos cristãos. Na Europa, derivou da norma proveniente da Igreja romana que proibia tocar os sinos das igrejas da quinta-feira santa ao sábado de Aleluia em respeito à morte de Jesus. A determinação apareceu no século VIII. Sua padronização, porém, se deu nos fins do século XII, início do século XIII.  Quem divulgou a interdição na França foi Simphosius Amarilius (aluno de Alcuíno), que determinou aos fiéis que se contentassem em bater pedaços de madeira, imitando o que faziam os cristãos primitivos reunidos nas catacumbas para os rituais religiosos, por falta de sinos. Em conseqüência, apareceram e se tornaram populares variados tipos de matraca (Lima, 1971).

A Semana Santa
Ao lado das cerimônias oficiais promovidas pela Igreja católica, encontram-se, com muito vigor, os rituais e costumes espontâneos da Semana Santa praticados no contexto  da cultura popular-folclórica. São um conjunto complexo de elementos que resultam da reinterpretação popular dos textos evangélicos e de conceitos europeus anônimos surgidos em algum momento da Idade Média. Por exemplo, no século VIII a Igreja proibiu os cristãos de tocar sinos (e músicas profanas) da 5ª feira ao sábado de Aleluia. Sugeriu que os substituíssem batendo pequenos pedaços de madeira como faziam os fiéis escondidos nas catacumbas quando não possuíam sinos e eram perseguidos pelos soldados romanos. Essa teria sido a origem das matracas que se tornaram instrumentos oficiais da Semana Santa.
Dentre os rituais folclóricos da Semana Santa podemos observar as grandes procissões: a do Enterro, conduzindo o esquife do Senhor Morto, cheia de figuras bíblicas, com a participação da Verônica que canta exibindo o sudário com o rosto de Jesus desenhado com  sangue; a das Dores que é o encontro de Nossa Senhora com o Filho;  aquelas chamadas de Fogaréu, onde se conduzem tochas acesas para simular a procura de Jesus para que seja preso, e outras –  organizadas pelo povo, não pela Igreja.
 Da mesma forma, as representações teatrais da Paixão de Cristo efetuadas pelas coletividades por iniciativa própria que podem se constituir em grandiosos espetáculos populares.

Há um grande número de proibições, crendices e práticas mágicas. Jejum sexual é das proibições mais generalizadas. Outras: não casar, não fazer festa, não bater em crianças, não trabalhar.  Para dar sorte: visitar sete igrejas; guardar as flores que enfeitarem o esquife do Senhor Morto na procissão do Enterro; comprar aneizinhos e correntes de prata na 6ª feira da Paixão.

Páscoa
Páscoa, a  festa mais importante do cristianismo, é pré-cristã e provém do costume pagão muito antigo de comemorar a entrada da primavera no hemisfério norte, coincidindo com o equinócio de primavera em 21 de março, quando termina o longo e rigoroso inverno e retorna  o calor, o sol,  a vegetação; os coelhos saem das tocas e são vistos pulando pelos campos. A vida se renova.
O Antigo Testamento descreve a pessach (páscoa) dos hebreus que é a passagem da escuridão para a luz, ritual que celebra a libertação, por Moisés, do povo hebráico  escravizado pelo faraó do Egito. É a conhecida estória das sete pragas enviadas por Deus, a fuga dos hebreus e a abertura do mar Vermelho para permitir sua passagem.  
A Páscoa cristã, como ritual do Novo Testamento, não é mais do que a reinterpretação daquele episódio: a ressurreição de Cristo é o símbolo da libertação dos hebreus ou  a passagem da escuridão para a luz; a hóstia, metáfora do corpo de Cristo é o pão ázimo (sem fermento – na fuga do Egito não havia tempo para esperar a massa fermentar); o vinho, tradicional da ceia dos hebreus, significou o sangue de Cristo – tudo representado na cerimônia da Páscoa  e na missa tradicional da cristandade.
Em inglês a Páscoa chama-se easter, derivado de Eostre, deusa germânica da fertilidade, celebrada no equinócio da primavera com seu símbolo o coelho.
Na Escócia a Páscoa é conhecida como Paiss.
A Páscoa  é uma festa móvel anual cuja data é referência para se estabelecer as outras datas festivas. A primavera no hemisfério norte tem início no dia do equinócio de primavera:   21 de março. No primeiro domingo de lua cheia a partir de 21 de março, a cada ano, comemora-se a Páscoa. Este calendário obedece a uma tabela  lunar  estabelecida por um astrônomo grego chamado Meton,  em 430 antes de Cristo. Meton tabulou um ciclo de 19 anos solares e 235 meses lunares chamado Número Áureo que estabelecia o ano com 365 dias aproximados. Pela relativa precisão e praticidade, foi utilizado nos cômputos eclesiásticos.
 Tendo como referência a Páscoa, determinam-se o carnaval, 46 dias antes, e Pentecostes, 50 dias depois.

O coelho, em muitos países, é o totem da Páscoa porque simboliza a fertilidade, vale dizer, a conservação da espécie, o recomeço da vida. O mito foi trazido ao Brasil pelos imigrantes alemães cerca do século XVIII

E o ovo contém em si uma vida nova. A ressurreição, portanto. Em muitas culturas antigas, como na chinesa, tinha esse significado e ovos de ouro e pedras preciosas eram dados como presente a pessoas importantes.
Mas em alguns lugares o coelho da Páscoa é substituído, como em Paris  por exemplo, pela galinha .

Queima de Judas
Esta é realizada geralmente no sábado de Aleluia. Provém do rito ancestral do Fogo Novo, de origem hebraica que sobreviveu no rito romano recodificado. O Fogo Novo comemorava festivamente o fim do inverno no hemisfério norte quando as comunidades acendiam grandes fogueiras ao lado dos templos e os sacerdotes benziam o fogo. Geralmente rapazes saíam em bandos gritando : “Fogo Novo!”  A igreja cristã adaptou o ritual pré-cristão aos seus desígnios, primeiro denominando-o de Fogo de Judas e depois realizando a queima de um boneco (costume comum na Idade Média) que simulava o traidor de Jesus. É   prática encontrada hoje em quase toda a Europa.



Leituras sobre este texto: Uma leitura transdisciplinar do fenômeno sonoro  (Sobre Recomenda de Almas) de Sonia Albano (org); Folclore das festas cíclicas, de Rossini Tavares de Lima

sábado, 7 de dezembro de 2013

Kurt Weil e Bertold Brecht, parceria notável para a música dramática do século XX. E a instigante prostituta Jenny/Geni


      

         Este texto já  havia sido postado há mais de um ano  mas volto a ele porque relacionei mais evento ao tema, no caso a peça teatral de Nelson Rodrigues Toda Nudez Será Castigada.
         Eu sempre tive curiosidade de conhecer um pouco mais da relação que envolve quatro óperas conhecidas, sendo uma delas brasileira, tão erudita quanto as outras, porém criada no âmbito da  elevada arte popular, sua linguagem e as liberdades formais que esta lhe permite; acrescento ainda uma conhecida peça de teatro de um dos mais importantes dramaturgos brasileiros.  Meu foco são as obras de Kurt Weill e Bertold Brecht, a  Ópera dos Três Vinténs e Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny.  As demais, envolvidas nesta comparação são a Ópera do Mendigo, de John Gay e Pepusch, do século XVIII, e A Ópera do Malandro, de Chico Buarque. De Nelson Rodrigues é a peça Toda Nudez Será Castigada.  E o leitmotiv é a personagem Jenny / Geni, a prostituta execrada.
         As quatro óperas têm o mesmo conceito  na estrutura das peças, na caracterização dos personagens – malfeitores, assaltantes, rufiões, prostitutas- traidoras; na ambientação – um sub-mundo social; nas estórias – corrupção e exploração; e até na encenação de uma parada, na cena final.
       Por incrível que pareça, ao pesquisar Weill e Brecht, encontrei até Bob Dylan, vejam só!
        Kurt Weill nasceu em Dessau, Alemanha, 1900, e morreu em Nova York, 1950. Filho de um cantor litúrgico judeu, que lhe deu educação rígida e meio esnobe, era tímido e devotado à música. Na juventude quis ir para Viena estudar com Schoenberg  mas, como a situação financeira da família não permitiu, foi para Berlim e estudou com  Ferruccio Busoni (ítalo-germânico, 1866-1924). Em Berlim se surpreendeu com a complexa linguagem sinfônica de Mahler e o apelo popular de Strawinsky na História do Soldado. Busoni era um mago da música do início do século XX, um cosmopolita num contexto nacionalista, um pragmático quando dominava o absolutismo estético. Muito ensinou a Weill e, principalmente,  a “não ter medo da banalidade” – na época,  tudo o que era italiano ou francês. Weill se desenvolveu musicalmente com a abertura, a liberdade e a inovação vigentes.
        Berlim, no período entre as duas guerras mundiais, era uma cidade de possibilidades ilimitadas, onde tudo era possível. Conviviam comunistas, nazistas, social-democratas, nacionalistas, com expressionistas, dadaístas, românticos anacrônicos. Era a cidade dita “sem pudor algum”.
         Os jovens compositores alemães aderiam aos ritmos do Jazz, ao ruído das máquinas da indústria e se envolviam com a cultura popular. Queriam efetuar a união da música erudita com a vida moderna.
       Weill desenvolveu a teoria do caráter gestual da música – o Gestus – o momento em que a pantomima, a fala e a música dão origem a um lampejo de significação. Escreveu o ensaio Sobre o Caráter Gestual da Música, em 1928.
       Bertold Brecht, alemão, viveu de 1898 a 1956. Foi poeta e dramaturgo, um dos maiores autores alemães e um dos mais relevantes literatos do século XX. Para o teatro, continua a ser extremamente importante até hoje. Suas obras têm dimensão pedagógica; é contrário à passividade do espectador. Marxista, defendeu formar/estimular o pensamento crítico.
       A partir de 1927, Brecht se une a Weill e juntos vão criar óperas memoráveis. Brecht apreciava expor  os fora da lei, os corruptos, pessoas sem princípios e a crueldade, categorias exploradas na Ópera dos Três Vinténs e na Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny. Aliás, em Berlim e em Weimar havia uma obsessão pela figura do homem mau, do assassino, do malfeitor retratado na arte. (Lembre-se o cinema expressionista alemão)
        A  Ópera dos Mendigos ( The Beggar´s Opera) criada na Inglaterra em 1728 por John Gay e Pepusch, tem como protagonista o capitão Macheath, pessoa sem escrúpulos, conquistador de mulheres, um gênio do crime cujo caráter audacioso é o tempero da sua sorte.  A ópera satiriza   o interesse das classes altas pela ópera italiana, ataca estadistas, regimes corruptos e criminosos conhecidos. Macheath acaba traído pela prostituta Jenny (e outra chamada Sukey)  e é condenado à morte.  Foi criado como sátira dos políticos corruptos da época de John Gay. Saiba mais no site:        http://pt.wikipedia.org/wild/The_Beggar´s_Opera   

         A Ópera dos Três Vinténs é uma alegoria da Ópera dos Mendigos. Nela,  o Macheath,  de Weill/Brecht, chamado Mack the Knife, Mack o Navalha, embora encantador é mais terrível, um psicopata que mata por prazer e por dinheiro. Jenny, a prostituta, sonha em vingar-se dos homens que a exploraram.  Com a chegada de um navio de piratas, ela pede a eles que destruam essas pessoas. Há uma canção-tema que ficou famosa, conhecida como “balada do assassinato” na qual são relatados homicídios como o desaparecimento de homens ricos, sete crianças mortas num incêndio, uma jovem estuprada e a morte de Jenny Towler, com uma faca no seio.
        Olhe a Jenny, aí.
       A canção Mack, o Navalha, na década de 50, entrou para o repertório popular americano, ganhando variantes nas vozes de Louis Armstrong e Frank Sinatra. Armstrong, de brincadeira, acrescentou  à letra da música, mais vítimas de Mack, entre outras: Jenny Diver, sweet Lucy, Lotte Lenya (cantora e amante de Weill).
       Olha a Jenny  outra vez...
        Podemos assistir a uma apresentação de Armstrong, de 1956, cantando esta  canção, acessando o site: 


        Em 1962, foi apresentada uma revista no Theater de Lys, em Greenwich Village, Nova York, chamada Brecht on Brecht, em cuja platéia se encontrava um jovem cantor e compositor de Minnesota, Bob Dylan. Ele se encantou ao ouvir a canção “Pirate Jenny” (Pirata Jenny), da Ópera dos Três Vinténs,  na qual a prostituta revela seu desejo de se vingar de seus exploradores.  Dylan escreveu em sua autobiografia que os exploradores estavam ali na platéia e que não havia protesto ou crítica social e política na canção. Impressionou-o o refrão que repetia:  E um Navio com Oito Velas e Cinqüenta Canhões, em que os versos lembravam a buzina de nevoeiro em Lake Superior perto de sua casa de infância. Dylan imprimiu a linha do Gestus, por influência de Weill e Brecht, em suas próximas composições, dentre elas  A Resposta está soprando no Vento,   Vai cair uma Chuva Forte, Os Tempos Estão Mudando. 
        Viram a Jenny ai?
        Ouçam a canção  Pirate Jenny, com Nina Simone, no site:


         e Bob Dylan em A Resposta está soprando no Vento em:


        Em 1931, com a relação Weill/Brecht completamente desgastada, é dada a público uma obra prima da dupla: a ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. Conta a estória da viúva Begbick e seus comparsas, acusados de fraude e lenocínio, que estão fugindo das forças da lei quando o seu caminhão tem uma pane e pára em pleno deserto. Eles resolvem, então, fundar aí uma cidade (referência a Las Vegas). E logo chegam os tubarões: a prostituta Jenny e seus companheiros mal encarados. O vício e a corrupção prosperam, nascem fortunas. Após um furacão que quase destrói a cidade , um lenhador Jim Mahony, a princípio do bem,  proclama nova lei: cada um deve fazer o que quiser. Estabelece-se a anarquia e Jim, acusado de não pagar as contas, é condenado à morte. E a cidade também chega à ruína.
       O libreto de Brecht costuma ser  interpretado como um protesto contra o capitalismo desenfreado norteamericano; ou também pode ser uma crítica à falsa utopia da União Soviética. No site a seguir encontram-se reproduções da ópera: 


        A Ópera do Malandro, de Chico Buarque, estreada em 1987, foi inspirada na Ópera dos Três Vinténs de Weill e Brecht e atualizada para a realidade brasileira em 1940, no fim do Estado Novo. O cenário é a Lapa, bairro do Rio de Janeiro.  A sociedade está repleta de empresários inescrupulosos, policiais corruptos, agiotas, empresários inescrupulosos, contrabandistas que freqüentam bares e bordéis. Há rivalidade entre o comerciante dono do bordel e o chefe contrabandista que acaba se casando em segredo com a filha do primeiro. Gení e o Zepelim constitui um quadro emblemático dentro da representação. Um belo dia chega à cidade um zepelim do qual desce um capitão que ameaça destruir a população a menos que consiga os favores de Geni, a prostituta execrada por todos. Ela se recusa e passa a ser assediada e bajulada hipocritamente pelas autoridades, pessoas importantes como o prefeito, o bispo, o banqueiro e todos os moradores para que aceite o capitão do zepelim. Acaba cedendo. O capitão, satisfeito, vai embora. E todo povo da cidade volta a humilhá-la,  cantando: Joga pedra na Gení / joga bosta na Gení /ela é feita pra apanhar /ela é boa pra cuspir /ela dá pra qualquer um / maldita Gení.                          
      Ver no link:


       A música Malandro, no início da  ópera, é uma paródia musical de Mack the Knife.  Para informações completas e ouvir a música, acessar os vários links do Google que têm por título A Ópera do Malandro.
      A canção Malandro está no link:


       Em Toda Nudez Será Castigada, a prostituta Gení, de Nelson Rodrigues, tem um sonho na vida: morrer de câncer no seio. A peça, estreada em 1965, relata a estória de uma família conservadora na qual o pai casa-se com a prostituta que passa a ter intenso relacionamento amoroso com o filho homossexual que faz todo o possível para terminar o casamento do pai.
       A Jenny, na ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny é do lado do mal, uma das causas que levaram à destruição da cidade. Nas demais, é mais uma vítima dos contextos sociais injustos e um veículo da crítica à hipocrisia e aos preconceitos, principalmente contra a mulher.
      Jenny/Gení  lembra Lilith, símbolo de mulher sedutora, desafiadora e má. Consta ter sido a primeira esposa de Adão, anterior à Eva  (mito do Talmud) que partiu do Paraíso para regiões ignotas por não aceitar a obrigação  de se submeter ao companheiro uma vez que  era feita da mesma matéria que ele, o barro. (Eva foi feita da costela de Adão e como parte dele devia ser submissa.) O sentimento se estendia à posição do ato sexual e no repúdio ao corpo do homem sobre o seu.  Consta que  Lilith foi quem deu à Eva a maçã proibida.
      Só para constar, no dicionário Novo Michaellis, inglês-português, 32ª ed., Ed.   Melhoramentos, v. 1, pág. 555,  encontramos o verbete:  jenny - substant. comum fem. – fêmea; fêmea de animais;  Jenny-ass-substant. Asna, besta, burra.
        Jenny era portanto um jeito depreciativo de nomear a mulher tachando-a de besta, burra, fêmea de animal.  Diante da prostituta, formalizava-se o preconceito maior. Ou seria, desde sempre, preconceito contra todas as mulheres?



 Obs: Se quiserem conhecer mais sobre os temas deste texto  sugiro a leitura do livro de Alex Ross, O Resto É Ruído, Cia. Das Letras, 2009.  

 

        

        

        

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Eric Satie, Picasso e o balé Parade

Este post é em homenagem a Cyro Botelho do Nascimento, um primo reencontrado por meio de um grupo de família na web, após milhares de anos,  e que mora muito longe, no Rio Grande do Sul. Ele me deu uma grande alegria  ao conseguir na internet uma partitura de Eric Satie que eu não conseguia obter, a Gnossienne nº 1 (que agora não paro de tocar). Retribuindo, estou contando quem foi Satie inserido no contexto histórico musical do seu tempo.   
 

Cortina de cena para o balé Parade, de Eric Satie, pintada por Picasso. (Paul Griffiths, A Música Moderna,)

Eric Satie e o Neoclassicismo


Eric Satie e o Neoclassicismo


 


No início do século XX,  de 1914 a 1918, ocorreu a Primeira Guerra Mundial. Antes disso, o
Romantismo já atingira o seu apogeu e muitos compositores se encaminhavam para uma estética  de abertura e renovação,  percebida desde o final do século XIX. Depois da guerra houve mudanças substanciais não só no pensamento e nas atitudes, na maior parte do mundo ocidental,  como no contexto das artes em geral e da música. As gerações que viveram a guerra passaram a pensar a música de maneira diferente.


Importantes compositores decidiram buscar novos caminhos e um destes caminhos tinha por base a música mais antiga, anterior ao romantismo. Nasceu uma escola que foi chamada de Neoclassicismo, caracterizada por atitudes anti-românticas: a objetividade em vez da subjetividade do romantismo.  Tais  compositores sentiram-se atraídos por um retorno ao séc. XVIII, tratado  porém com ironia. Concluíram que podiam aproveitar muito do “velho estilo”: a vivacidade rítmica, nitidez de ideias, as  formas concisas do barroco e do classicismo (ao contrário dos modelos longos e complexos, a exemplo de Mahler). 

O neoclassicismo significava acima de tudo, ironia; e o objeto dessa ironia com o passado, podia ser buscado em qualquer época.

Um dos principais, senão o principal dos compositores dessa nova tendência,  foi Igor Feodorovitch   Strawinsky ( S. Petersburgo, 1882-  Nova York, 1971). Strawinsky entregou-se ao neoclassicismo motivado por Diaghilev.

 Serge Diaghilev ( Rússia, 1872- Veneza, 1929) foi um legendário e brilhante empresário de balé, fundador da companhia de Balés Russos, que eletrizou Paris na década de vinte.  Teve o extraordinário mérito de atrair e envolver em sua companhia e seus espetáculos os maiores compositores da época como Debussy, Strawinsky, Prokofieff, Ravel, Satie;  os maiores pintores como Picasso, Braque, Utrillo; os maiores escritores com destaque para Jean Cocteau. Produziu e criou coreografias antológicas para os balés Petruchka, Sagração da Primavera, Les Noces,  Parade, Jeux, Prélude à  l´ Aprés Midi d´un Faune.  Ainda revelou os mais célebres bailarinos da história, principalmente Nijinski, e outros como Serge Lifar e Ana Pavlova, tão importantes quanto.

 

Eric Satie  (França, 1866-1925)

Compositores do período tiveram atitude  sistemática e irreverente em relação ao passado, principalmente aqueles atuantes em Paris, cidade adotada por Strawinsky. Em 1920, influenciados pelo literato Jean Cocteau, alguns desses músicos reunidos no que se chamou o Grupo do Seis (que incluía Tailleferre, Poulenc, Darius Milhaud, Honegger, George Auric, Louis Durey) adotaram a estética da irreverência e anti-romantismo:  música  direta, secamente espirituosa e atual. Escolheram por modelo Eric Satie, que enveredara por uma espécie de dadaísmo[1] Ele queria a música reduzida ao estritamente essencial. Era dono de um terrível senso de humor e de paródia. Colocava títulos surrealistas em suas peças como: Choses vues à Droite et à Gauche sans lunettes,  Trois morceaux en forme de poire, Sonatine Bureaucratique, Embryions dessechées ( Coisas Vistas à Direita e à Esquerda sem Óculos, Três peças em forma de Pera, Sonatina Burocrática, Embriões Dissecados) e cultivava sua inconsequência na “música de mobiliário”,  isto é, música de fundo, destinada a ser ignorada. Suas indicações de dinâmica eram no mesmo estilo: pp en pauvre souffle , avec beaucoup de mal ( pp já sem fôlego com muita dificuldade). Na música, a escrita era esparsa, seca, caprichosa, paródica, espirituosa como no balé Parade (1917) que descreve uma parada, um desfile de circo,  numa  sucessão de construções musicais  ingênuas e de cuja orquestração fazem parte os sons de um revolver e de uma máquina de escrever. Entre outros exemplos despojados e minimalistas, estão as Gnossiennes e as Gymnopedies,  peças para piano.

Para o balé Parade,  Picasso desenhou a cortina de cena do palco do teatro que ficou famosa e hoje corre mundo em exposições a exemplo da que foi realizada em S. Paulo, em 2004. Picasso  desenhou também a capa da partitura de Rag-time, de Strawinky,  o cenário e figurinos para o balé Pulcinella e a caricatura  do autor;  Jean Cocteau fez a caricatura de Satie.

            Os primeiros anos do século XX representaram um período de rupturas, de amplas mudanças, de liberdade de criação e de multiplicidade de tendências que marcaram a história da música ocidental. ( Alex Ross, O Resto é Ruído; Paul Grffiths, A Música Moderna).( Caricatura de Satie por
Jean Cocteau - Griffiths)
           

 

 

[1] Dadaísmo- movimento literário lançado em 1916 por Tristan Tzara, escritor francês de origem rumena (1896-1963) e cujo princípio essencial era, tal como no superrealismo que lhe sucedeu o apelo ao subconsciente: dada.

 
Desenhos de Picasso: capa da partitura Ragtime, figurino de balé e caricatura de Strawinsky.
( Paul Griffiths,  A Música Moderna).




sexta-feira, 5 de julho de 2013

Música colonial mineira - o século XVIII



Em homenagem aos 40 anos do Museu da Música de Mariana, MG.,preparei o texto abaixo com a finalidade de percorrermos, juntos, caminhos da história da música nas Minas Gerais no ciclo do ouro, do diamante, do brilho, da riqueza, do fausto e do desenvolvimento extraordinário das artes e da cultura. Desenvolvimento também da consciência de liberdade, justiça e democracia que culminou com a Conjuração Mineira, primeira tentativa de libertar o Brasil do jugo de Portugal.

O órgão que ilustra esta exposição está na Catedral de Mariana e é um instrumento precioso. Foi construído na Alemanha em 1701, mais tarde comprado por D. João V de Portugal e doado à Arquidiocese de Mariana. Viajou desmontado e sua montagem foi feita pelo pai do Aleijadinho,  por volta de 1754.

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Música colonial em Minas Gerais: o século XVIII



Aspectos históricos, culturais e sociológicos. Não são contemplados aspectos técnicos da música.

O séc. XVIII, nas Minas Gerais, foi o período mais importante da história da música colonial brasileira. A música aí atingiu níveis  estéticos, de criação e execução, e de volume de produção, inacreditáveis para a época e condições culturais que imperavam no Brasil.

Por incrível que pareça, esse universo musical era desconhecido dos brasileiros até 1944, quando foi descoberto por Francisco Curt Lange, um musicólogo alemão naturalizado uruguaio, que pesquisava a música colonial do Brasil. Com ele foram se revelando as atividades musicais de um século de história da música brasileira, justamente aquele período mais significativo e intrigante, ligado a mudanças sociais, econômicas e políticas.

Naturalmente o fator econômico decorrente da riqueza das minas de ouro e diamantes foi um dos determinantes desse desenvolvimento musical extraordinário. Mas isso não explica o fenômeno em toda a sua extensão. Bahia e Pernambuco também foram poderosas economicamente e tiveram vida musical expressiva, mas muito aquém do que ocorreu nas Minas Gerais.

Eis o testemunho de Saint-Hilaire, em sua obra Voyage dans les Provinces de R . Janeiro e Minas Gerais : “...e celebrou-se na igreja paroquial da Vila do Príncipe, uma missa com música, à qual assistiram, com grande toillete as pessoas as mais distintas da cidade. Os músicos,  todos habitantes do País, estavam postos numa tribuna e o povo não tomava parte nos cantos. A música convinha à santidade do lugar como também à solenidade da festa e foi perfeitamente executada. Diversos cantores tinham uma voz calorosa, e duvido que, em alguma cidade do norte da França, de semelhante população, se executasse uma missa com música tão bem como essa.” (Kiefer, p. 31)

É necessário recorrer à história de Minas Gerais e examinar os aspectos históricos e sociológicos, isto é, a formação dessa sociedade onde ocorreram os fenômenos musicais, para tentar entender esse desenvolvimento surpreendente. Vamos nos reportar aos tempos iniciais da povoação da então Província das Minas Gerais, pertencente à Capitania de S. Paulo e Minas.

No séc. XVII, bandeirantes paulistas descobriram as jazidas de ouro na região. No final do século já se iniciou o povoamento, primeiro com paulistas e depois com baianos, pernambucanos e reinóis.

Os paulistas consideravam-se os donos da terra.

A mineração se dava em três zonas: do Rio das Mortes cujo centro era S. João d’El Rey; a de Vila Rica e Mariana; a do Rio das Velhas, com centros em Sabará e Caeté. Isto significa que haveria posteriormente vida musical intensa nesses locais.

Não há nada que possa dar idéia  do alvoroço geral que a divulgação da descoberta das minas causou. A notícia  se espalhou por todo o Brasil e pelo Reino de Portugal e as migrações em massa tornaram-se espantosas. Acorreram pessoas das cidades, das vilas, do sertão; eram brancos, mulatos, mamelucos, negros, índios; moços e velhos, pobres e ricos, plebeus e aristocráticos, clérigos.

É fácil imaginar o que daria aquele aglomerado humano, em seu delírio de riqueza, afastado do mundo, longe da autoridade oficial. A vida era conturbada, a ambição causava desentendimentos, a convivência era difícil.

Enquanto os paulistas defendiam as minas como seu patrimônio exclusivo, por terem sido os descobridores, os forasteiros - chamados de emboabas - entravam com eles em competição acirrada. Quando se sentiram bastante fortes em armas e número, não hesitaram em se levantar unidos para garantirem pela força os seus direitos ( ou não).

Desde 1706 havia animosidade cerscente entre os dois grupos, os paulistas e os emboabas .O enfrentamento era inevitável e bastariam pequenos incidentes para precipitar os fatos.

Incidentes: em Caeté, no domingo à porta da igreja, dois paulistas poderosos esperavam a missa quando passou um forasteiro armado com espingarda à tiracolo, em atitude de provocação. Os paulistas quiseram tomar-lhe a arma e houve reação. Estava armado o conflito. Logo após é morto um paulista, em sua própria casa, onde acoitava o  assassino de um forasteiro. As hostilidades chegarem ao extremo da guerra: a Guerra dos Emboabas.

Em 1709 termina a guerra com a derrota dos paulistas.

Para se entender o desenvolvimento cultural e social das Minas Gerais é preciso considerar a importância dos emboabas na formação da mentalidade do povo mineiro.

Esse povo estava apenas se formando, mas era orientado por um sentido de independência e democracia. Eram mineradores e comerciantes, portugueses, pernambucanos e baianos (a maioria), um grupo social novo, uma força emergente que se opunha aos bandeirantes.

Em Minas houve uma grande mudança: trocou-se a atividade econômica rural e agrária, e o regime latifundiário, como na Bahia e Pernambuco, por uma economia urbana e mercantilista,  de comércio. Não havia a aristocracia rural, isto é, o  grande senhor dono de infindáveis levas de terras, uma especie de feudo. A sociedade habitava cidades, em convivência; desenvolvia-se o comércio, a cultura. Houve até exagero pois nem a agricultura de sobrevivência foi atendida.

Minas Gerais viu então desenvolver-se uma classe média urbana, independente, democrática e que influenciou a formação política e cultural. Uma classe trabalhadora e não servil, contrária ao autoritarismo e ao preconceito de nobreza sanguínea. A cidade começava a ter função de cidade mesmo, inclusive com a divisão progressiva de trabalho, coisa extraordinária no regime colonial, dando origem a profissões diversas e ao corporativismo profissional.

No terreno da música, por exemplo, os compositores trabalhavam para as Irmandades, para as corporações de ofícios e para o Senado da Câmara - instituições que contratavam compositores, pagavam e exigiam música de boa qualidade, dando sustentação financeira à música mineira. Foi um tempo em que a música prestava seviço a corpos intermediários, não estava a serviço do rei.

Esta sociedade estava imbuída do espírito do Iluminismo, cujas ideias chegavam a Minas Gerais trazidas pelos jovens que iam estudar em Portugal ou outro país europeu, a exemplo de Cláudio Manuel da Costa. A influência foi tão intensa que fomentou a Conjuração Mineira.

Na história da Capitania das Minas Gerais, em 1720 ela  havia sido  desmembrada da Capitania de S. Paulo e Minas. No ano seguinte fora instalado oficialmente o primeiro governo com sede em Vila Rica, hoje Ouro Preto. Em 1728 ocorrera a descoberta das jazidas de diamantes  em local distante, mais ao norte da Capitania. Fundara-se aí o arraial do Tejuco, hoje Diamantina,  centro musical da maior importância. (Bruno Kiefer, História da Música Brasileira)

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        Notas sobre o Iluminismo: filosofia do séc. XVIII que inaugura as principais vertentes do pensamento moderno. O avanço da ciência garante que todos os problemas serão elucidados, esclarecidos, iluminados. Suprime-se a submissão à autoridade, instala-se a primazia da razão, das luzes.

No plano político e social, representa as bases para a defesa da liberdade e igualdade entre os homens. É abolido o sentido medieval de mistério e misticismo que envolvia a visão de mundo. A verdade é obra do homem. O que torna legítimo o conhecimento é a evidência, inteligível ou sensível, e não a autoridade. Começa com o racionalismo de Déscartes que reduz o conhecimento científico a idéias claras e distintas, sob inspiração das matemáticas.  E vale-se do empirismo inglês, de Francis Bacon que afirma que todas as idéias originam-se na experiência sensível. Nada há no intelecto que antes não passe pelos sentidos. Estas duas linhas são formadoras do Iluminismo.

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Francisco Curt Lange, pesquisando documentos antigos, descobriu número impressionante de músicos profissionais em Minas Gerais no séc. XVIII; só em Vila Rica, cerca de 250, em documentação a que teve acesso.

De onde teriam vindo esses músicos profissionais?  Como, em pleno sertão surge uma vasta escola de elevada eficiência profissional e mais ainda, com uma abundante produção que segue, toda ela, as tendências estilísticas da música contemporânea européia?

F.C.Lange considera primeiro a possibilidade de procedência de S. Paulo e Rio de Janeiro, mais próximos das Minas  Gerais, mas dado ao escasso desenvolvimento cultural e insignificância desses centros na época, descarta a possibilidade.

Restam duas hipóteses: a vinda de Portugal e de centros culturais brasileiros mais adiantados então: Bahia e Pernambuco.

Outro dado deve ser incorporado à pesquisa: a presença, em larga escala, do mulato livre como músico profissional. Estes são tão numerosos que excluem a hipótese de Portugal.

Por que só os mulatos? Não teriam os negros participado também?

Porque os mulatos livres eram emancipados e buscavam sua ascenção social dedicando-se a determinados ofícios, às artes e, principalmente, à música; ofereciam os seus serviços sem interferências de terceiros. Aos negros não foi possível essa emancipação porque, quando treinados para o exercício da música, com a finalidade de integrar  coro e orquestras dos seus ricos senhores, o faziam na condição de escravos. Eram até alugados para serviços externos, trazendo lucros aos senhores. Mas eram propriedades, peças, não tinham  autonomia nem categoria social.

E a participação do clero no desenvolvimento musical de Minas?

Pesquisas de C. Lange apontam a participação de padres-músicos na vida musical de Pernambuco e Bahia no período anterior ao ciclo do ouro. Na migração para a região mineira, no início do séc. XVIII houve, talvez, padres-músicos mas dominavam os leigos. Registros de Vila Rica, ainda acessíveis, mencionam alguns padres contra número notavelmente superior de músicos leigos.Os vestígios da organização musical na sua origem indicam a iniciativa particular, independente, com músicos livres, portugueses primeiro, mas logo suplantados por brasileiros.

Importante na iniciativa particular foi o ensino da música. O sistema de ensino correspondia aos Conservatórios da  tradição européia - as Casas dos Mestres da Música- que hospedavam os aprendizes, forneciam vestimentas, alimentação e estudo. Depois colocavam-nos, de acordo com as aptidões, em atividades musicais públicas ou privadas, profissionalizando-os. Eles tornavam-se aptos a trabalhar para organizações como Irmandades ou o Senado da Câmara, por simples chamada ou por contrato prévio. Os mestres, formados em latim, teoria e prática musical e a maioria também em composição, transformavam estes meninos, em poucos anos, em excelentes músicos.

 

Das atividades musicais e da música

O movimento artístico surgido na Europa no séc. XVIII (o Rococó), sob influência da filosofia do Iluminismo,  explodiu também em Minas Gerais. É surpreendente pois a região estava confinada num agitado clima político, dominado pela corte portuguesa, sem imprensa própria e onde só circulavam a Bíblia e as cartilhas de alfabetização. Apesar disso, configurou-se uma mentalidade combativa de um povo que lutou pela liberdade. A exploração do ouro gerou contradições sociais, econômicas, políticas e em consequência, artísticas. O movimento foi de tal expressividade que condicionou um estilo na arte onde a contemplação  cedeu lugar à ação – o que na música gerou um estilo híbrido: estilo sensorial onde a contemplação mística cedeu lugar à ação prática de caráter litúrgico, ritual. 

A maior parte da criação musical, evidentemente, dirigia-se às funções religiosas: música para o culto, procissões, casamentos e ofícios fúnebres. Estava sempre sujeita a contratos, seja por parte das Irmandades (rivais entre si) seja por parte do Estado, i. é., do Senado da Câmara. Os próprios músicos pertenciam às Irmandades e a corporaçõesprofissionais.

Havia também a música nos atos públicos e a música militar, ou banda de música. Já no começo da colonização a música militar cultivava instrumentos de sopro diversos, em geral a cargo dos negros escravos. Estes atuavam também nas  casas senhoriais. Era de bom tom ter negros choromeleiros (tocadores de charamela, antigo instrumento de sopro, de madeira e palhetas, simples ou duplas) no inventário das famílias abastadas. Esses choromeleiros são citados abundantemente nas procissões e atos públicos, em geral em Vila Rica e Mariana e fazendo serenatas ao ar livre

No terreno da Ópera, existiu a Casa da Ópera, em Vila Rica atual Teatro Municipal de Ouro Preto, construído em 1750, dos mais antigos da América do Sul. Há documentos de seis óperas encenadas.

A formação musical destinada ao culto era constituída pelo quarteto vocal, um  coro misto e acompanhamento orquestral. Na prática, o quarteto vocal encontrava dificuldades pois não era costume as mulheres participarem. A voz superior devia ser confiada a vozes brancas (de meninos) e o contralto só era acrescentado  quando havia contraltos masculinos com voz de falsete. Em consequência, freqüentemente as quatro partes se reduziam a três, possivelmente contra a vontade do autor.

O coro era pequeno, não passava de 16 figurantes, 4 solistas e acompanhamento instrumental; quando havia 2 coros, cada qual tinha o seu conjunto acompanhante.

Sobre a orquestra, na 2ª  metade do séc. XVIII os instrumentos usados eram, de modo geral:  violinos (ou rabecas), violas (violetas), violoncelos, contrabaixos de 3 cordas ( rabecões ou becões), flautas, oboés, fagotes, trompas (corni), clarins, tímbales (percussão). Já no final do séc.  encontram-se clarinetas; com o correr do tempo, o oficleidi, a família dos saxofones, o trompete (piston) e o  trombone. O oficleidi preenchia a função de baixo acompanhante. Substituía nas igrejas e bandas o velho serpentão, de sonoridade fanhosa.

Havia também os conjuntos instrumentais menores e sua estrutura baseava-se no quarteto vocal: soprano, alto, tenor e baixo. Os instrumentos eram: 1º e 2º violinos, violas, violoncelos e contrabaixos de três cordas. Podiam incluir trompa; nos conjuntos um pouco maiores estavam tb. oboés, flautas, clarins, timbales; mais tarde,  clarinetas.

Na prática os músicos escreviam obras de acordo com o instrumental de que dispunham e em função das próprias e urgentes necessidades da demanda.

 

A contemporaneidade com obras européias

Os compositores mineiros mandavam buscar partituras dos mestres europeus, de navio, pelo porto de Lisboa. Do estudo e cópia destas partituras, se aperfeiçoavam para escrever suas obras. Daí a contemporaneidade.

 Os músicos profissionais e amadores, nas horas livres, reuniam-se para tocar música de câmara dos mestres europeus. Sabe-se que existiram muitos quartetos de cordas constituídos dentro das famílias, inclusive com participação de escravos, interpretando obras do repertório universal. C. Lange encontrou cópia do Quarteto op. 3 de Haydn, feita em Vila Rica em 1794 (Haydn morreu em 1809-estava vivo, portanto). Lange descobriu ainda, em Mariana, em um arquivo quase todo destruído partes de quartetos de Haydn, das 3 primeiras sinfonias de Beethoven,  impressas em Londres; variações sobre Der Vogelfanger bin ich ja, de Mozart; trechos de ópera de Bellini e uma missa de Palestrina fartamente copiada.

Por que o estilo essencialmente europeu dos compositores mineiros?

Se eram mulatos porque não deixaram transparecer, por mais discreta que fosse, uma influência dos ritmos africanos?

Explica-se pelo intenso desejo dos mulatos de ascenção aos padrões sociais da classe dominante. A escravidão estava ainda muito próxima, era por demais dolorosa, devia causar angústia e medo. Não seriam eles que iriam incorporar em suas criações elementos da música e das danças africanas (que eram estreitamente ligadas), proibidas e condenadas pelas autoridades.

Crepúsculo de uma cultura

De meados do século XVIII em diante as minas caminham  para um  franco declínio comprometendo a economia e o futuro da sociedade. A arte, porém, continuou sendo produzida e no caso da música, até com certo vigor. Sabemos que a proibição da instalação de gráficas na colônia comprometeu a literatura mas não afetou a divulgação da música que então se espalhava por todo o território das Minas, graças ao trabalho dos copistas (profissionais que copiavam partituras). A fama de uma obra de arte corria rapidamente por todas as cidades e as orquestras, preocupadas em manter um repertório à altura de suas exigentes patrocinadores – as ricas Irmandades - imediatamente contratavam copistas para a transcrição das peças.  As Irmandades exigiam obras inéditas o que levava os compositores a uma grande produção.

Enfraquecida, a região ia testemunhando o declínio dos núcleos urbanos e um gradual esvaziamento, à medida que as empresas auríferas paralisavam suas atividades. Porém o mercado de trabalho para os músicos e artistas aumentava: Aleijadinho esculpia em Congonhas do Campo os Passos e os profetas de Bom Jesus de Matosinhos.  As Irmandades continuavam ativas e sustentavam as artes devido ao capital acumulado nos tempos de riqueza. Mas o que se pagava aos artistas era muito pouco e o ganho logo absorvido pelo alto custo de vida,  o que acentuava a decadência.

 Na última década do século e início do seguinte, morreram os mais geniais artistas: os músicos Inácio Parreira Neves, Lobo de Mesquita, Jerônimo de Souza Lobo,  Marcos Coelho, Francisco Gomes da Rocha, Manuel Dias de Oliveira; o arquiteto da famosa Igreja da Ordem Terceira de S. Francisco em S. João d’El Rei, Francisco Lima Cerqueira e logo depois, o  artista máximo da arquitetura e da escultura, o Aleijadinho.

Apagava-se o  brilho de um ciclo maravilhoso nas artes e na música  não pela morte dos geniais artistas mas porque o poder econômico das poderosas Irmandades, afinal, estava definitivamente abalado. No momento em que a economia urbana entra em colapso,  as atividades vão sendo transferidas para a pecuária e a agricultura, determinando o fim da arte  urbana do barroco e da música do rococó-classicismo nas Minas Gerais.

 

Para elaboração deste texto, parte do curso  História da Música no Brasil, da Faculdade de Música Calos Gomes, em S. Paulo,  compilei e pesquisei as seguintes fontes:

 

KIFER, Bruno.  História da música brasileira.  3ed., Porto Alegre: Movimento, 1977 

LANGE, Francisco Curt.  La música en Minas Gerais.  Boletim Latino Americano de Música. VI/6 Abril, 1946,  Montevideo.  ( Tradução:  Niomar  Souza ) 

 MARIZ, Vasco.  História da música no Brasil. 5ed.., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000

MINAS COLONIAL. Edição especial de Casa e Jardim. Coordenação de Francisco Brant, s/d

REZENDE, Maria da Conceição.  A música na história de Minas colonial.  Belo Horizonte: Itatiaia; Brasília: INL, 1989.

CURSO de Restauração e Edição de manuscritos da Música Colonial Mineira. Professor Paulo Castagna, Faculdade de Música Carlos Gomes, 1992.

 

Ver texto de José Maria Neves e outros sobre a Música Mineira no século XVIII no site:

 


quinta-feira, 27 de junho de 2013

Comemoração dos 40 anos do Museu da Música de Mariana, MG.

 Paulo Castagna envia convite para comemoração dos 40 anos do Museu da Música de Mariana, MG. Professor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, Paulo Castagna é pesquisador de reconhecida competência técnica e artística da música antiga brasileira, séculos XVIII e XIX, tendo se dedicado ao riquíssimo acervo da música religiosa mineira deste período. Foi coordenador musicológico do valioso projeto Acervo da Música Brasileira - Restauração e Difusão de Partituras da Fundação Cultural da Arquidiocese de Mariana, MG., responsável pela publicação de nove volumes de partituras e nove CD´s, disponibilizados na página www.mmmariana.com.br Recebeu do governo de Minas Gerais a  Medalha da Inconfidência
          Além disso, é para mim um amigo precioso.