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quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

PASTORIL - um auto de Natal




PASTORIL - um auto de Natal
Pastoril é um auto de Natal presente no folclore brasileiro de norte a sul do país, com muitas variantes, e destaque para a região Nordeste. É uma forma de teatro de palco ou cortejo de rua, na qual artistas populares amadores, cantando e dançando encenam uma viagem até Belém para visitar o Menino Jesus que nasceu. Iniciam o espetáculo cantando: Estando as Pastorinhas / aqui neste lugar / meus senhores todos / queiram desculpar – Senhoras e senhores / queiram desculpar/ que a nossa jornada / já vai começar.
Os personagens são: as pastoras, dispostas em dois cordões (alas), o cordão azul e o encarnado, cores estas da indumentária e adereços; a Diana, pastora que fica no meio das alas e tem as duas cores, mais o Pastor Velho que as guia; o demônio Luzbel que contracena com o Anjo Gabriel; a Borboleta, a Cigana, a Camponesa e a Estrela.
O Pastor é engraçado e muito trapalhão, lembra o histrião do teatro grego ou o bufão da história do teatro em todos os tempos. Declama versos estropiados: Eu não vejo quem me afronte / numa dança de três pé / afinem bem as garganta / e cantem lá se quisé. Durante a jornada, os pastores passam por várias peripécias e encontram os referidos personagens. Uma noite, quando todos dormem, a Mestra acorda, sai andando e se perde no mato. De repente, com um grande barulho, aparece Luzbel, que com o seu canto, tenta de toda forma seduzi-la prometendo palácios, luxo e riquezas: Dar-te-ei um trono de gala / e riquezas sem igual / belezas e sons de opala / palácios, coroa e val. Ela o repele mas não consegue se livrar: Não quero tuas riquezas / nem teu trono festival / rejeito as tuas belezas / ó mensageiro do mal. Aparece o Anjo Gabriel que o afugenta mas antes é enfrentado: Tremei, tremei, ó Gabriel tremei / que lá no inferno eu sou o rei / meu senhor mandado tenho / prazeres e mando ferrenho. E ele se vai furioso. Seguindo a viagem, os pastores se deparam com a Borboleta para quem cantam: Ó minha linda borboleta / que vives no meu jardim / responde, ó linda borboleta / o que achas de mim. Adiante encontram a Cigana cujo canto é: Sou Cigana do Egito/ vim aqui para dançar / eu digo o destino de todas / e o desejo do coração. Chega a Camponesa, cantando: Eu sou uma Camponesa / interessante e catita / vá desculpando a franqueza / tenho graça e sou bonita. A Estrela aparece e anuncia a aurora: Aurora de hoje / já vem amanhecendo / e as estrelas, e as estrelas / e as estrelas vão se escondendo. Com a chegada do dia, encerra-se a jornada: Adeus, é tarde / nós vamos partir / o dia amanhece / queremos dormir.
O público que assiste o Pastoril, escolhe um dos cordões e torce ruidosamente por ele, aplaudindo ou vaiando o adversário. Isto é uma tradição.

Na Faculdade de Música Carlos Gomes, montamos um Pastoril em 2006, num trabalho interdisciplinar que envolveu alunos de todos os cursos, professores e funcionários. Sob direção da professora Sonia Albano, que concedeu TCC coletivo aos alunos que participassem, eu, Niomar, como professora de Folclore, coordenei o evento.
Convidamos os alunos a participar por meio de cartazes colocados no mural da escola. Precisávamos de atores-cantores-dançarinos, instrumentistas, regentes, arranjadores, editores de música. Os candidatos a atores, principalmente a atrizes pois só há dois papéis masculinos, sentiram-se indecisos e inseguros pois não tinham experiências anteriores. Foi preciso muito incentivo para que se decidissem. Finalmente conseguimos formar o grupo e configurar a encenação: quinze alunas representando as Pastoras e um aluno, o Pastor Velho; outros fizeram os personagens Luzbel, o Anjo Gabriel, a Cigana, a Borboleta, a Estrela e a Camponesa , num total de 21 artistas no palco.
Quanto à música, são vinte e quatro peças cantadas, dançadas e representadas, com acompanhamento instrumental. Os arranjos e cifragem das partituras couberam ao aluno de composição, regência e licenciatura Giba Estebez, que também editou a maioria das 24 peças. Outros alunos colaboraram na edição: Alberto Korbes, Tarsis Iraídes, Alexandre Fonseca, Ricardo Barbosa, Valéria Castellano, Matheus Sigalli. Esta foi uma das tarefas mais difíceis e demoradas porque além das dificuldades técnico-musicais, nem todos os programas musicais de informática eram compatíveis entre si e a veiculação inter-computadores tornou-se complicada. Aluno de regência, José Antunes Filho contribuíu dirigindo ensaios e a regência na apresentação final coube a Ester Freire, aluna experiente em dirigir coro. Os cantores líricos abriram mão de suas vozes preparadas e cantaram com voz natural, igual à dos demais alunos que aproveitaram sua experiência do curso de canto coral; nos instrumentos, Giba Estebez, tocou teclado, Jefferson Denis Pinheiro, violino, Valéria Castellano, flauta, Eloísa Divetta, violão. Páulio Celecino, Eduardo Rosa Estácio e Felipe Dourado, fizeram a percussão.
Houve ainda a colaboração de docentes: o professor de Análise e Harmonia, compositor Antonio Ribeiro distribuiu as peças entre os seus alunos para um estudo da prosódia. O Professor de Metodologia Científica Regis Gomide, consultado sobre a metodologia adequada ao texto, sugeriu um desenvolvimento livre, sem formalidades, como se contássemos uma estória. O Professor de Prática de Conjunto Cesar Albino emprestou microfones e pedestais e conseguiu, com amigos, cabos que nos faltavam. Da mesma forma o aluno Marco Desco contribuiu com os microfones e pedestais do seu estúdio particular. Eu desenhei e orientei a confecção das fantasias, encomendadas a uma profissional pela Professora Sonia Albano. A aluna Vilma Ribas fez os adereços e acessórios ornamentais como flores e fitas dos chapéus, o cajado do pastor,os enfeites da camponesa, etc. Mírian Meyer e Ester Freire colocaram as fitas nos pandeiros. Ex-aluna, Akiko Sato Matsumoto responsabilizou-se pela montagem do presépio que fazia parte da cena. Uma contribuição valiosa foi prestada por Júlia Augusta Pereira Pescuma, que não é aluna mas amiga da Faculdade, filha de professora, que fez um filme em VHS cobrindo o espetáculo em detalhes ( que foi útil para uma apreciação crítica e correção de erros visando novas apresentações). A professora Sonia Albano providenciou uma gravação em DVD.
Sobre o local da apresentação, recebemos apoio da Associação Cultural Abaçaí, Cultura e Arte, na pessoa de seu Diretor Cultural Toninho Macedo, que ofereceu espaço no Parque Água Branca, locação usada para as suas próprias apresentações E ainda mais, inseriu o espetáculo do Pastoril na programação da Associação Cultural Abaçaí para o domingo 03 de dezembro de 2006 e fez a divulgação institucional.
Participar do Pastoril exigiu muito empenho dos alunos no esforço de dedicar parte do seu tempo (geralmente curto) ao estudo e ensaios do espetáculo. Houve grande dificuldade em conciliar o horário dos ensaios pois quase todos os participantes, além de freqüentarem as aulas da Faculdade, trabalhavam tocando em conjuntos, gravando em estúdios ou dando aulas. Foram estabelecidos dois horários e os alunos escolhiam o mais adequado. Mas no final, dezenas de domingos foram passados na Faculdade para os ensaios gerais. Para isso, contamos com a colaboração, também voluntária, de funcionárias que abriram a Escola, como Maria Antonia D´Arc Maciel Bento e principalmente Gisele Cristina dos Santos.
Para montar a encenação, eu me inspirei no auto Pastorinhas, de Pirenópolis, GO, que investiguei por vários anos. Dele emprestei a forma de espetáculo de palco, as marcações cênicas, a coreografia e os passos de dança, além do modelo da indumentária e adereços, e sobretudo o episódio dramático da tentação de Luzbel e a interferência do Anjo Gabriel.
Eu possuía um CD com libreto, chamado Pastoril, excelente trabalho de pesquisa, direção artística e produção de Dinara Helena Pessoa, etnomusicóloga, pós-graduada pelo Centro de las Culturas Populares, de Caracas e professora de Música da Universidade Federal de Pernambuco. O encarte é precioso porque, além de um histórico e desenho das figuras, contém vinte músicas com partituras e textos do Pastoril pernambucano. Estas vinte peças musicais foram todas cantadas. O nosso Pastoril, portanto, foi uma recriação que associou o Pastoril pernambucano, nas músicas, ao Pastorinhas de Pirenópolis na concepção cênica, episódio do Luzbel, indumentária.

O Pastoril - um auto de Natal, por nós realizado, foi uma reprodução de um fenômeno folclórico. Ele foi retirado do seu contexto e utilizado em uma experiência acadêmica com fins pedagógicos e artísticos: um laboratório. Não fizemos folclore e sim o que se chama aproveitamento ou projeção de folclore que significa: reprodução do fenômeno folclórico fora do seu contexto social e desvinculado da função original. É uma representação, uma imitação, no melhor dos sentidos.

Determinantes históricas no percurso dos Pastorís





Determinantes históricas no percurso do Pastoril

É quase certo que as primeiras representações de Natal tenham surgido no início do século X, com o monge Tuotilo, morto em abril de 915, na abadia de Saint Gallo, centro germânico de difusão dos tropos.
Desde fins do século IX havia preocupação da Igreja com a participação dos fiéis nos mistérios cristãos, o que deu origem a cenas curtas, dialogadas, intercaladas na liturgia. Eram os tropos que surgiram na mesma época em Sankt Gallen, Saint-Martial de Limoges e, possivelmente em Fleury, tornando-se os núcleos dos dramas litúrgicos de que procede grande parte do teatro europeu, principalmente a ópera.
O Tropo de Natal, de Tuotilo, é o documento mais antigo do gênero. A elaboração dialogada pedia ação dramática. Os próprios clérigos disfarçados atuavam como personagens. Os minúsculos autos sacramentais ocorriam diante do altar, antes de começar a missa. Os temas eram a Natividade e a Páscoa. Com o tempo, desenvolveram-se até alcançar extensão de verdadeiros espetáculos, com os nomes de mistérios e milagres a princípio em íntimo contato com o culto e modesta participação do povo. Esta participação vai aparecer mais na representação da Paixão de Cristo, espetáculo que passa do altar à praça pública em verdadeira festa popular. À medida que passava o tempo, as execuções tornavam-se mais suntuosas e acentuava-se a influência leiga que iria culminar nos autos religiosos do início do Renascimento.
Os pequenos dramas de Natal desenvolveram-se rapidamente por todo o ocidente europeu e seu percurso foi, em linhas gerais, Alemanha, França, Península Ibérica. Uma das primeiras representações dramáticas do Pastoril em Portugal deveu-se a Gil Vicente com a apresentação, em 1523, do Auto Pastoril Castellano, escrito em espanhol. Juan Del Encina, dramaturgo, poeta e músico espanhol do século XV, escreveu os primeiros autos hieráticos na Península Ibérica e seus personagens eram pastores e cantavam vilancicos. Com os portugueses, o Pastoril veio para o Brasil e foi adaptado à nossa cultura.
No Brasil, os autos sobre a Natividade ocorrem principalmente no Nordeste, onde podem ser encontrados sob duas formas: o Presépio, nos moldes das Pastorinhas, no palco, e o Pastoril, nas ruas, de jornadas soltas, uma versão do primeiro porém com exclusão dos diálogos e acréscimo de entreatos e danças religiosas ou profanas; em alguns lugares podem ser deturpados, com textos licenciosos, trajes e gestos audaciosos.
Mas existem, em quase todas as regiões do Brasil, com muitas variantes, como as Companhias de Pastores, em Minas Gerais; Pastoria do Menino Jesus, em São Paulo; Baile Pastoril, na Bahia; Presépio, em Alagoas; Pastorinhas no Rio de Janeiro, Goiás e Espírito Santo.
Escreveram sobre Pastoril, entre outros: Mário de Andrade, em Danças Dramáticas do Brasil; Theo Brandão, em Pastoril; Câmara Cascudo, em Dicionário do Folclore Brasileiro; Renato Almeida, em História da Música Brasileira, 2 ed. Sobre tropos, Roland de Candé, em História Universal da Música.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Existe maior compromisso com a natureza e a vida do que isso?


Existe maior compromisso com a Natureza e a vida do que um gesto como esse?

Com o filho Tamataí no colo, a índia Huyra amamenta um filhote de porco-do mato, repetindo um hábito dos Guajá de tratar como crianças os filhotes de animais que matam.
(Folha de S. Paulo, 20/12/1992)

Acontece assim: alguém da tribo caça um animal e percebe que é uma fêmea e tem filhotes. Os “bebês” morrerão de fome se ficarem abandonados no mato. Ou poderão ser comidos por outros bichos. Eles são então levados para a aldeia e as mulheres que estão amamentando também os alimentam.
Simples assim. Sem discurso de ambientalistas, ecologistas, sociedades protetoras de animais ou repórteres de televisão. Apenas a visão de mundo de seres humanos que cuidam da Natureza porque ela lhes dá a vida.

Guajá é uma etnia indígena brasileira que se auto-denomina Awá, palavra que significa Homem, Pessoa ou Gente. Começou a ter contato permanente com o homem branco a partir de 1973 e habita o noroeste do Maranhão nas Terras Indígenas do Alto Turiassu e TI Caru, compartilhadas pelos Ka´apor, Timbira e Guajajara.
Mais ao sul, nas TI (significa Terras Indígenas) Arariboia, foram avistados outros grupos de Guajá, estes arredios, em acampamentos abandonados. Sabe-se de outros mais distantes ainda, também sem contato com o branco, que se movimentam pelas serras e chapadas que ligam Maranhão, Tocantins, Goiás, Piauí, Bahia.
A classificação lingüística dos Guajá é Tupi-guarani portanto do tronco Tupi. Sua população hoje é de cerca de 230 indivíduos vivendo em quatro comunidades aldeadas pela FUNAI; e acredita-se que cerca de 30 deles são os que habitam as florestas, em completo isolamento.
Agricultura itinerante, caça e pesca são suas atividades de sustentação. Plantam mandioca, arroz, milho, batata doce, cará, banana, melancia, laranja e fazem muito uso do babaçu.
Em sua organização social, ao longo da vida, homens e mulheres podem ter vários matrimônios.
Eles praticam um ritual chamado “viagem para o céu” (ohó iwa-beh), em noites de lua cheia. Os homens são preparados pelas mulheres com enfeites de plumagem de aves e cantam e dançam ao redor da takaia, construção preparada no descampado da aldeia. Depois entram na takaia, um de cada vez e continuam dançando e batendo fortemente os pés no chão. Com o impulso deste forte movimento, sobem ao céu onde encontram os antepassados e outras entidades espirituais com as quais interagem. Retornam à terra “incorporados” e vão, dançando, ao encontro das mulheres e familiares que abençoam com sopros. As mulheres não “viajam” mas têm participação importante: pedem que eles voltem ao céu e tragam de lá entidades específicas para as consultas ou para a cura. No momento deste ritual, o homem torna-se o elo de ligação entre o mundo dos espíritos e o mundo físico do cotidiano da comunidade.
Os Guajá foram estudados pelo etnólogo paraense Louis Carlos Forline, da universidade Federal do Pará e do Museu Emílio Goeldi, que fez das suas pesquisas a tese de doutoramento The Persistence and Cultural Transformation of the Guajá Indians, aprovada pela Universidade da Flórida, em 1997. Ele tem obras publicadas sobre o tema.
Para maior conhecimento, vejam:
http://www.arara.fr/BBTRIBOS.htttml#arawete e
http://www.arara.fr/BBTRIBOGUAJA.html

Sinfonia de celulares...pendurados em árvore !


Uma sinfonia de celulares ... pendurados em uma árvore

Duas artistas da Estônia estiveram em S. Paulo, em novembro de 2008 para tomar parte na 3ª Mobilefest – Festival Internacional de Arte e Criatividade em Mídias Móveis, evento dedicado às relações entre sociedade e tecnologias móveis de comunicação, que aconteceu no Museu da Imagem e do Som.
Eve Arpo e Riin Kranna- Roos, as duas jovens estonianas, idealizadoras do concerto de celulares, propuseram ao público deixar seus aparelhos por 24 horas pendurados em uma grande árvore no pátio do MIS, como parte de uma instalação a que chamaram Um Dia sem Celular. A sinfonia de luz e som realizou-se entre 19:00 e 20:00h quando o público todo ligou para os seus aparelhos, simultaneamente, fornecendo o espectro sonoro da “sinfonia”.
Segundo Kranna-Roos: “A obra surgiu da constatação de que os celulares, embora uma criação recente na história da humanidade, viraram uma extensão de nós mesmos. São extremamente viciantes. Embora saibamos que cada povo tem uma cultura diferente, o apego e a dependência que o celular provoca é universal e muito atual. Por isso, todo mundo entende a piada e a ironia que a obra propõe. É um trabalho sobre o cotidiano de todos nós.”
(Folha de S. Paulo, 15/11/2008, pág. E14)

sexta-feira, 26 de novembro de 2010


Almeida Prado, um grande compositor que nos deixou

Em Medjugorjie, na ex-Iugoslávia e atual Bósnia-Herzegovina, registram-se, desde 1981, aparições da Virgem Maria, testemunhadas por devotos com poderes extrasensoriais. Pessoas de fé, dos mais diferentes lugares do mundo, afluem à cidade-santuário com a finalidade de participar da experiência mística. Dentre essas pessoas, um dia se encontrava José Antonio de Almeida Prado que contou sua experiência em entrevista concedida à jornalista Ana Lúcia Vasconcelos, em 2007. Ele revelou que sentiu a presença de Maria perto dele e teve a certeza do amor de Deus. Dedicou horas às orações e ao rezar diante de uma cruz de madeira, sentiu que Jesus falava “ dá-me tua vida” e constatou que era um instrumento de Cristo.
(A íntegra dessa entrevista está no site “Cronópios-Literatura & Arte plural” e há uma síntese no site “Queridos Filhos”).

Em razão dessa revelação, em 1987 compôs a obra Rosário de Medjugorjie: 15 peças sobre os mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos, incluindo as mensagens de Nossa Senhora aos videntes que a receberam. A extensa obra tem uma linguagem transtonal.

Eu quis começar este texto destacando um lado sensível do compositor, que me emociona, qual seja o de sua sincera religiosidade e misticismo que ele confessava sem reservas, como em entrevista a Ronaldo Miranda, em 1975: “ no momento, procuro a religiosidade não só nos temas sacros, mas em todas as manifestações humanas. Ao compor, quero transmitir o que há de mágico e sagrado nas coisas que nos cercam. Quero descrever o medo, a alegria, o êxtase, o pânico, o silêncio. Quero dar à religião um sentido de vida universal e atual.” (Este registro está em História da Música no Brasil, de Vasco Mariz, página 396. )

À luz dessa religiosidade, escreveu numerosas obras em épocas diversas, como A Missa da Paz , ainda em 1965, Therèse (L´Amour de Dieu), Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo Segundo Marcos,Ritual para Sexta Feira Santa, A Carta de Patmos, Celebratio Terrae Nostrae, Bendito da Paixão de Jesus de Nazaré, La lettre de Jerusalém, Missa de S. Nicolau, Quinze Flashes de Jerusalém,Adonai Roi Loeçar (com texto hebraico do Salmo 22), Yerushaláim Nevé Shalom.

Almeida Prado foi pianista, doutor em música e compositor de música erudita contemporânea – um dos mais importantes, refinados, criativos e geniais compositores brasileiros, tendo ocupado o mais alto patamar do nosso universo musical. Vasco Mariz chegou a perguntar: “Não será um segundo Villa-Lobos?” (No livro História da Música no Brasil, 5ª ed.)

Nasceu em Santos, SP., em 1943. Estudou com Dinorah de Carvalho, Osvaldo Lacerda e Camargo Guarnieri adotando a princípio a estética nacionalista. Até que Gilberto Mendes lhe emprestou partituras de Stockhausen e Messiaen e ele passou a procurar novos caminhos na música universalista. Aos 24 anos, com uma bolsa de estudos ganha em um concurso de música, foi para a Europa. Primeiro passou por Darmstad, na Alemanha, onde fez cursos de especialização com Ligeti e Lukas Foss; depois foi para Paris onde permaneceu por quatro anos estudando com Nadia Boulanger e Olivier Messiaen. Ele dizia que vivenciou o sentido da rítmica quase cósmica de Messiaen e o rigor da forma pela forma de Nádia Boulanger. Inteirou-se da técnica dos “Modes de Valeur et Identité” de Messiaen. Foi um aprendizado importantíssimo para seu amadurecimento musical.

Em 1974 tornou-se professor e depois diretor do Instituto de Artes da UNICAMP onde se doutorou em música e permaneceu até 2000 quando se aposentou. Era titular da cadeira número 15 da Academia Brasileira de Música. Ministrou palestras e cursos nos EUA, na Universidade de Indiana e na Academia Rubin, em Jerusalém, entre outras. Suas obras têm sido apresentadas nos EUA, na Alemanha, na Suíça, na Bulgária. Até sua morte, residindo em S. Paulo, ministrava cursos de análise bem como análise de sua obra e apresentava o programa Kaleidoscópio na rádio Cultura FM, falando de música contemporânea.

Sobre a obra é composta de música para orquestra, coro, voz, câmara, vários instrumentos solos e peças geniais para piano (era exímio pianista). Destas, destaco a série Cartas Celestes, extenso ciclo para piano que teve início com a sua tese de doutorado, de mesmo nome, e que explicou ser uma “uranografia sonora geradora de novos processos de composição”; a continuação do ciclo, Cartas Celestes volumes 2, 3, 4, 5 e 6, relativa aos planetas do sistema solar, foi composta de 1974 a 1982. A obra é de uma importância ímpar porque nela o estilo transtonal foi empregado de maneira consciente e persistente. O transtonalismo pesquisa elementos de ressonância num espectro sonoro mais amplo. Almeida Prado explica que o sistema transtonal leva em conta as ressonâncias naturais, os fatores acústicos e a necessidade de uma neocadência. Ele deu continuidade à série até o volume 14 das Cartas Celestes, porém abandonou a transtonalidade porque não o interessava mais e usou um estilo pós-moderno, isto é, tomou texturas, repertórios e mecanismos do passado e adaptou à sua nova linguagem.

No ano passado, a OSESP apresentou uma obra sinfônica sua, Arredores de Paris que fazia contraponto a um filme mudo, em branco e preto, sobre Paris do início do século XX e que se desenrolava ao fundo do palco. A peça musical, quase sempre descritiva, absolutamente adequada às imagens, fazia menções à Marselhesa, ao Cancan e a músicas francesas populares, de uma forma sutil e genial.

No dia 21 de novembro de 2010, após dez dias de internação em um hospital em S. Paulo, morreu aos 67 anos, José Antonio Rezende de Almeida Prado. Seu corpo foi velado no Teatro S. Pedro e sepultado no Cemitério da Consolação.

Sua música, com certeza, o imortalizou.

sábado, 13 de novembro de 2010

Gilberto Mendes, o transmoderno

Gilberto Mendes, o transmoderno, e a
45 ª edição do Festival Música Nova

A mídia de São Paulo divulgou na semana de 15 a 21 de outubro, dentre os eventos do 45º Festival Música Nova, os mexicanos da Fragmentos Kafka, apresentando a Ópera 24, de Gyorty Kurtag, o conjunto de percussão Materiales Ensemble e o norteamericano Alvin Lucier com a obra Musicaficta. Todos artistas internacionais e representantes da música contemporânea.

Histórico do Festival Música Nova: Gilberto Mendes, juntamente com Willy Correia de Oliveira, Damiano Cozzela, Rogério Duprat e Júlio Medaglia, criou o Grupo Música Nova em 1962 e o lançou com o Manifesto Música Nova, no ano seguinte, num ambiente totalmente hostil ao experimentalismo. Para tornar pública sua visão do fenômeno musical, o Grupo contou com a participação do maestro Olivier Tony e a Orquestra de Câmara de S. Paulo e com o regente Klaus Dieter Wolf, e o Madrigal Ars Viva.
O Manifesto definia a postura do Grupo: compromisso total com o mundo contemporâneo; processo criativo partindo de elementos concretos em oposição ao idealismo; valorização dos meios de informação sendo a comunicação um ramo da psicofisiologia da percepção; a música como arte coletiva; educação musical, processo de aprendizado da linguagem, não na transmissão de conhecimento mas na integração à pesquisa; possibilidade do acaso controlado; semântica musical equilibrada entre informação semântica e informação estética face à criação-consumo; libertar a cultura brasileira das estruturas idológicas-culturais.
O impacto do Manifesto foi grande tendo atingido revistas especializadas no Brasil e exterior.
O Festival, frequentado por músicos de vanguarda do mundo todo, tem caráter internacional e tem oferecido primeiras audições de obras de compositores brasileiros e estrangeiros.
Gilberto Mendes foi e é até hoje a alma do evento. Para mantê-lo, as dificuldades enfrentadas não tiveram limites, ao longo desses anos. Só para se ter uma idéia, muitas vezes importantes compositores estrangeiros tiveram que ser hospedados em casa de amigos por faltar verba para pagar um hotel. Atualmente, o Festival conta com patrocínios e uso de incentivos fiscais.

Gilberto Mendes nasceu em Santos em 1922. O pai morreu cedo, ele teve de ajudar a família, foi funcionário público e bancário. Começou tarde a se dedicar somente à música. Estudou com Cláudio Santoro e Olivier Toni. A partir de 1962 frequentou os cursos de Darmstad, Alemanha, aperfeiçoando-se com Boulez, Henri Pousseur e Stockhausen. Foi professor de composição na Universidade de Brasília, na USP, em Universidade de Santos, na Universidade de Wisconsin, EUA, na PUC S. Paulo (Estética na Pós-Graduação), na Universidade do Texas, EUA. Recebeu inúmeros prêmios. A UNESCO divulgou sua obra Blirium A-9 escolhida pela Tribuna Internacional de Compositores. Ligou-se aos poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, fazendo música concretista
A princípio serialista, foi pioneiro em música aleatória na década de 60, fez “música teatro” na década de 70, criou música concreta, microtonal, usou uma nova notação musical, praticou a mixed media, o minimalismo. É uma das figuras mais importantes da música brasileira atual. É considerado, no século XXI, um precursor do pós- modernismo na música.
Gilberto Mendes se considera um transmoderno, segundo suas próprias palavras, porque perpassou pelos domínios do modernismo.
Vamos lembrar algumas de suas obras emblemáticas que apesar de criadas em décadas passadas, continuam a ser um espanto.
No livro Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio (1999), de Heloisa de Araújo Duarte Valente, encontramos:

- Nascemorre - (1963, sobre poema concreto de Humberto de Campos)– aleatória e microtonal; para octeto vocal, percussão, fita magnética (opcional) e 2 duas máquinas de escrever. Estrutura: inexistência de alturas fixas, somente faixas de frequência; blocos microtonais. Exige notação especial: gráficos e diagramas; ruído como elemento estrutural: maracas, bongôs, batidas de pés e das máquinas de escrever. Estrutura do poema é fonte das estruturas temporais: 1,2,4,6 ou 1 3 6 9 tempos = às sílabas. Quanto à voz, quatro formas de emissão vocal contrastantes em intensidade; som aspirado em ff ; exploração fonética do D à qual o autor pede inclusão de um N.

Santos Futebol Music ( 1965)–para orquestra sinfônica, fitas magnéticas c/ narração de partidas de futebol, charanga e platéia. Conta com som concreto, som orquestral desprovido de melodia, participação do público, teatro musical (performance) e o espaço como construto musical. Tratamento especial da voz: falada/cantada desde motivos melódicos, vogais isoladas, fala a meia-voz, entoação de protesto, ruídos de qualquer natureza, expressões comuns aos gritos de torcidas como gool!.

- Motete em ré menor ( 1966) – para coro a capella sobre poema concreto de Décio Pignatari. Conhecido como Beba Coca-Cola. Glissando com voz nasalada, da região mais aguda à mais grave, arroto, sons aspirados, boca chiusa, falas estridentes, entonação “grotesca, irritada, rabujenta, imitando o Pato Donald,” voz de tenor cacarejada, sopranos, contraltos e baixos, ação cênica – tudo para transformar o som musical em algo semelhante ao ruído provocado por ânsia de vômito seguido do som do arroto: o som mais abominável que aparece em destaque. Um breve Teatro Musical Originalmente o poema se inspirava na pulsação dos luminosos em todo o mundo, anunciando o produto; demarcada melodicamente pelo acorde re-fa-la-mib, circunscrita ao pentagrama; blocos rítmicos de 6 compassos com os tempos 3-2-2-2-2-1.

- Oralia: Asthmatour (1971)- para vozes e percussão: pandeiro. maracas, crótalos e ação teatral, sobre texto de Antonio José Mendes. O ar é o leitmotiv da peça metalinguagem da propaganda, incluindo um jingle no final; explora intensamente sons respiratórios, vocais e bucais: estalidos de língua no céu da boca e nos dentes, gargarejos em alturas diferentes, inspiração, dispnéia asmática (e ruído do aparelho bombinha) ... além da enunciação característica do discurso publicitário; fala dramática (teatro musical) acrescida de elementos cênicos; fala imitando emissão afetada das garotas-propaganda, no final. Material abundante para abordagem do ruído: da percussão, palmas, estalos de dedos e modo especial como são trabalhados os ruídos da boca e da voz.

Ópera Aberta : Performance de fôlego e de músculos (1976)- Teatro música para cantora e halterofilista. Homenagem a Humberto Eco e sua Obra Aberta. É um contraponto a duas partes como consta no cabeçalho da partitura-bula. A cantora exibe seu fôlego que se acumula no tórax enrijecido em sua performance vocal; o halterofilista exibe seu tórax, seus músculo, obtidos graças a rigorosa preparação física.. É uma representação na qual música é apenas o fio condutor.
A maior diferença entre o teatro musical e o teatro convencional é que este último tem como fio condutor um enredo; o teatro musical não tem enredo verbalizado e é articulado sem lógica resultando em situações absurdas. A Ópera Aberta é uma sátira ao trabalho de bastidores empreendido pelo músico- atleta; tudo o que mostra é somente o exercício da ginástica representada pelos vocalizes que entrecortam as árias de ópera. Evidencia a desimportância do trabalho do cantor ( e do músico virtuose), sob a forma de teatro musical.
Voz- a cantora entra em cena vestida a caráter e começa a cantar e representar trechos variados de óperas entremeados de exercícios vocais destacando enlevo e encantamento com a própria voz que vai moldando, acariciando com as mãos como se a visse materializada. É enamorada da sua voz.
Corpo – pouco depois entra o halterofilista pulando corda, vestido a caráter e faz exercícios com halteres entremeados de exibições dos próprios músculos braçal, peitoral, dorsal. É um enamorado do seu corpo.
No canto esquerdo um grupo de 4, 5 pessoas sentadas de perfil p/ o público aplaude freneticamente gritando “bravo!”
Cantora e halterofilista são independentes, um ignora o outro até o momento em que a cantora percebe o parceiro, olha-o de alto a baixo entre surpresa e indignada e com mãos à cintura diz seu nome (que será o de algum personagem de ópera). Não consegue perturbá-lo e volta a cantar.
Finalmente o halterofilista toma conhecimento da cantora ao perceber que ela não consegue alcançar as notas cada vez mais agudas que tenta dar. Com intenção de ajudá-la, ergue-a do chão e a coloca sobre os ombros, dá uma volta no palco enquanto ela esperneia apavorada sobre seu ombro mas sem parar de cantar. E sai de cena lentamente.

Um conhecimento mais íntimo de Gilberto Mendes, a gente consegue assistindo ao DVD A Odisséia Musical de Gilberto Mendes, uma produção Berço Esplêndido, dirigida por Carlos de Moura Ribeiro Mendes. O filme conta com a participação da neta do compositor, narrando fatos de sua vida e aspectos de obras, além de depoimentos imperdíveis de Gilberto Mendes.

Ah, Camões, se vivesses hoje em dia...

Vejam o e-mail que recebí de uma amiga

Vestibular da universidade da Bahia pediu aos candidatos a interpretação do seguinte trecho de poema de Camões:

"Amor é fogo que arde
sem se ver
é ferida que dói e não se sente,
é um contentamento descontente
dor que desatina sem doer."

Uma vestibulanda de 16 anos deu a sua interpretação:

"Ah, Camões! se vivesses hoje em dia
tomavas uns antipiréticos
uns quantos analgésicos
e Prozac para a depressão.
Compravas um computador,
consultavas a Internet
e descobririas que essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esse desatino sem nexo
não eram feridas de amor,
mas somente falta de sexo!"

A vestibulanda ganhou nota 10: pela originalidade,pela estruturação dos versos, das rimas insinuantes e também, porque foi a primeira vez, ao longo de mais de 500 anos que alguém desconfiou que o problema de Camões era apenas falta de mulher!

sábado, 30 de outubro de 2010

Kurt Weill e Bertold Brecht, uma parceria notável para a música dramática do século XX - e a instigante prostituta Jenny / Geni

Kurt Weill e Bertold Brecht, uma parceria notável para a música dramática do século XX. E a instigante prostituta Jenny/Geni

Eu sempre tive curiosidade de conhecer um pouco mais da relação que envolve quatro óperas conhecidas, sendo uma delas brasileira, tão erudita quanto as outras, porém criada no âmbito da cultura popular e com as liberdades que esta lhe permite. Meu foco são as obras de Kurt Weill e Bertold Brecht, a Ópera dos Três Vinténs e Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. As demais, envolvidas nesta comparação são a Ópera do Mendigo, de John Gay e Pepusch, do século XVIII, e A Ópera do Malandro, de Chico Buarque. E o leitmotiv é a personagem Jenny / Geni, a prostituta execrada.
As quatro óperas têm o mesmo conceito na estrutura das peças, na caracterização dos personagens – malfeitores, assaltantes, rufiões, prostitutas- traidoras; na ambientação – um sub-mundo social; nas estórias – corrupção e exploração; e até na encenação de uma parada, na cena final.
Por incrível que pareça, ao pesquisar Weill e Brecht, encontrei até Bob Dylan, vejam só!
Kurt Weill nasceu em Dessau, Alemanha, 1900, e morreu em Nova York, 1950. Filho de um cantor litúrgico judeu, que lhe deu educação rígida e meio esnobe, era tímido e devotado à música. Na juventude quis ir para Viena estudar com Schoenberg mas, como a situação financeira da família não permitiu, foi para Berlim e estudou com Ferruccio Busoni (ítalo-germânico, 1866-1924). Em Berlim se surpreendeu com a complexa linguagem sinfônica de Mahler e o apelo popular de Strawinsky na História do Soldado. Busoni era um mago da música do início do século XX, um cosmopolita num contexto nacionalista, um pragmático quando dominava o absolutismo estético. Muito ensinou a Weill e, principalmente, a “não ter medo da banalidade” – na época, tudo o que era italiano ou francês. Weill se desenvolveu musicalmente com a abertura, a liberdade e a inovação vigentes.
Berlim, no período entre as duas guerras mundiais, era uma cidade de possibilidades ilimitadas, onde tudo era possível. Conviviam comunistas, nazistas, social-democratas, nacionalistas, com expressionistas, dadaístas, românticos anacrônicos. Era a cidade dita “sem pudor algum”.
Os jovens compositores alemães aderiam aos ritmos do Jazz, ao ruído das máquinas da indústria e se envolviam com a cultura popular. Queriam efetuar a união da música erudita com a vida moderna.
Weill desenvolveu a teoria do caráter gestual da música – o Gestus – o momento em que a pantomima, a fala e a música dão origem a um lampejo de significação. Escreveu o ensaio Sobre o Caráter Gestual da Música, em 1928.
Bertold Brecht, alemão, viveu de 1898 a 1956. Foi poeta e dramaturgo, um dos maiores autores alemães e um dos mais relevantes literatos do século XX. Para o teatro, continua a ser extremamente importante até hoje. Suas obras tem dimensão pedagógica; é contrário à passividade do espectador. Marxista, defendeu formar/estimular o pensamento crítico.
A partir de 1927, Brecht se une a Weill e juntos vão criar óperas memoráveis. Brecht apreciava os fora da lei, os corruptos, pessoas sem princípios e a crueldade, categorias exploradas na Ópera dos Três Vinténs e na Ascenção e Queda da Cidade de Mahagonny. Aliás, em Berlim e em Weimar havia uma obssessão pela figura do mau, do assassino, do malfeitor retratado na arte. (Lembre-se o cinema expressionista alemão)
A Ópera dos Mendigos ( The Beggar´s Opera) criada na Inglaterra em 1728 por John Gay e Pepusch, tem como protagonista o capitão Macheath, pessoa sem escrúpulos, conquistador de mulheres, um gênio do crime cujo caráter audacioso é o tempero da sua sorte. A ópera satiriza o interesse das classes altas pela ópera italiana, ataca estadistas, regimes corruptos e criminosos conhecidos. Macheath acaba traído pela prostituta Jenny (e outra chamada Sukey) e é condenado à morte. Foi criado como sátira dos políticos corruptos da época de John Gay.
A Ópera dos Três Vinténs é uma alegoria da Ópera dos Mendigos. Nela, o Macheath de Weill/Brecht, chamado Mack, o Navalha, embora encantador é mais terrível, um psicopata que mata por prazer e por dinheiro. Jenny, a prostituta, sonha em vingar-se dos homens que a exploraram. Com a chegada de um navio de piratas, ela pede a eles que destruam essas pessoas. Há uma canção-tema que ficou famosa, conhecida como “balada do assassinato” na qual são relatados homicídios como o desaparecimento de homens ricos, sete crianças mortas num incêndio, uma jovem estuprada e a morte de Jenny Towler, com uma faca no seio.
Olhe a Jenny, aí.
A canção Mack, o Navalha, na década de 50, entrou para o repertório popular americano, ganhando variantes nas vozes de Louis Armstrong e Frank Sinatra. Armstrong, de brincadeira, acrescentou à letra da música, mais vítimas de Mack, entre outras: Jenny Diver, sweet Lucy, Lotte Lenya (cantora e amante de Weill).
Olha a Jenny outra vez...
Em 1962, foi apresentada uma revista no Theater de Lys, em Greenwich Village, Nova York, chamada Brecht on Brecht, em cuja platéia se encontrava um jovem cantor e compositor de Minnesota, Bob Dylan. Ele se encantou ao ouvir a canção “Pirate Jenny” (Pirata Jenny), da Ópera dos Três Vinténs, na qual a prostituta revela seu desejo de se vingar de seus exploradores. Dylan escreveu em sua autobiografia que os exploradores estavam ali na platéia e que não havia protesto ou crítica social e política na canção. Impressionou-o o refrão que repetia: E um Navio com Oito Velas e Cinqüenta Canhões, em que os versos lembravam a buzina de nevoeiro em Lake Superior perto de sua casa de infância. Dylan imprimiu a linha do Gestus, por influência de Weill e Brecht, em suas próximas composições, dentre elas A Resposta está soprando no Vento, Vai cair uma Chuva Forte, Os Tempos Estão Mudando.
Viram a Jenny ai?
Em 1931, com a relação Weill/Brecht completamente desgastada, é dada a público uma obra prima da dupla: a ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. Conta a estória da viúva Begbick e seus comparsas, acusados de fraude e lenocínio, que estão fugindo das forças da lei quando o seu caminhão tem uma pane e pára em pleno deserto. Eles resolvem, então, fundar aí uma cidade (referência a Las Vegas). E logo chegam os tubarões: a prostituta Jenny e seus companheiros mal encarados. O vício e a corrupção prosperam, nascem fortunas. Após um furacão que quase destrói a cidade , um lenhador Jim Mahony, a princípio do bem, proclama nova lei: cada um deve fazer o que quiser. Estabelece-se a anarquia e Jim, acusado de não pagar as contas, é condenado à morte. E a cidade também chega à ruína.
O libreto de Brecht costuma ser interpretado como um protesto contra o capitalismo desenfreado norteamericano; ou também pode ser uma crítica à falsa utopia da União Soviética.
A Ópera do Malandro, de Chico Buarque, estreada em 1987, é ambientada na Lapa, bairro do Rio de Janeiro, em 1940, no fim do Estado Novo. A sociedade está repleta de empresários inescrupulosos, policiais corruptos, agiotas, empresários inescrupulosos, contrabandistas que freqüentam bares e bordéis. Há rivalidade entre o comerciante dono do bordel e o chefe contrabandista que acaba se casando em segredo com a filha do primeiro. Gení e o Zepelim constitui um quadro emblemático dentro da representação. Um belo dia chega à cidade um zepelim do qual desce um capitão que ameaça destruir a população a menos que consiga os favores de Geni, a prostituta execrada por todos. Ela se recusa e passa a ser assediada e bajulada hipocritamente pelas autoridades, pessoas importantes, todos os moradores para que aceite o capitão do zepelim. Acaba cedendo. O capitão, satisfeito, vai embora. E todo povo da cidade volta a humilhá-la, cantando: Joga pedra na Gení / joga bosta na Gení /ela é feita pra apanhar /ela é boa pra cuspir /ela dá pra qualquer um / maldita Gení.
Jenny, na ópera Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny é do lado do mal, uma das causas que levaram à destruição da cidade. Nas demais, é mais uma vítima dos contextos sociais injustos ou um veículo da crítica à hipocrisia e aos preconceitos.
Jenny/Gení lembra Lilith, símbolo de mulher sedutora, desafiadora e má. Consta ter sido a primeira esposa de Adão (segundo o Talmud) que partiu do Paraíso para regiões ignotas por não aceitar a obrigação de se submeter ao marido uma vez que era feita da mesma matéria que ele. Há o mito de que foi Lilith que deu à Eva a maçã proibida.
Só para constar, no dicionário Novo Michaellis, inglês-português, 32ª ed., Ed. Melhoramentos, v. 1, encontramos: jenny, substant. comum fem. – fêmea; fêmea de animais.
Seria um preconceito contra todas as mulheres?

Obs: Se quiserem conhecer mais sobre os temas deste texto, aconselho a leitura do livro de Alex Ross, O Resto É Ruído. E a Internet, jogando nomes e títulos no Google.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Episódios engraçados nos palcos da ópera 2

Carmen, de Bizet
Heidelberg (data ignorada)
(Revista L´Express)

Contou o maestro Ian Reid que dirigia a ópera Carmen quando ocorreu um imprevisto: o artista que representava o personagem D. José descobriu tarde demais que se esquecera de munir-se do punhal destinado a apunhalar Carmen na cena final. Desconcertado, ele decidiu, em desespero de causa, estrangulá-la. Apavorada, julgando que ele enlouquecera, a cantora começou a se debater, lutando para se salvar. Mas, boa profissional que era, tentava continuar cantando e assim o fez, com a voz estertorada e enrouquecida até poder “morrer”, afinal, aliviada.

Turandot, de Puccini
Ópera de Roma, 1954

Era a última cena e o cenário exibia as margens de um rio sinuoso numa paisagem oriental. Turandot estava em pé em uma das margens e o tenor Carlo Gasparini na outra, tendo entre eles uma pequena ponte rústica em estilo oriental. O jogo de cena indicado a Gasparini era simples: quando Turandot exclamasse “Mio nome é amor”, ele daria meia volta, atravessaria a ponte em passo acelerado e tomaria a princesa nos braços. No momento exato, ele girou o corpo e atirou-se para ela. Só que se esqueceu da ponte e, quando percebeu, tentou saltar sobre o rio mas, tarde demais, tropeçou e caiu dentro dele. No fim, deixou por pouco de fazer parte do séqüito dos pretendentes a se casar com Turandot que ela havia mandado matar porque não decifraram os enigmas que criara.
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sábado, 16 de outubro de 2010

UM FILME PARA SE PENSAR


Um filme para se pensar...e muitoA Teta Assustada ; uma jornada do medo à liberdade

Direção de Claudia Llosa. Peru, 2009
Vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim em 2009
Concorreu ao Oscar como melhor filme estrangeiro em 2010

Está escrito na caixa do DVD: “Metáfora do rompimento. Um país reprimido que só pode se expressar através do inconsciente: seus mitos, seus medos seus traumas. O corpo de uma mulher expressa o vazio que precisa ser preenchido; a angústia que precisa se acalmar; o pavor de encontrar algo diferente, de perder o controle.”

Este é um filme impressionante, cheio de metáforas, símbolos e mitos e uma realidade cultural que emociona.A história se passa em um povoado no Peru, habitado por descendentes dos índios que sofrem violenta opressão das forças oficiais. É uma sociedade muito pobre, aculturada e que convive com os avanços tecnológicos da civilização. A protagonista, uma bonita moça, amedrontada e tímida, vê sua mãe, uma velha índia, no leito de morte, relatar cantando sua trágica história, por meio de uma melopéia que lembra o cantochão. Ela descreve como, grávida da filha, foi violentada, assistiu ao assassinato cruel do marido e sofreu todo tipo de sadismo e torturas sexuais. O vandalismo era sistemático contra as populações indígenas o que motivou uma situação inacreditável: as mães lançavam mão de uma estratégia desesperada para proteger as filhas inserindo uma batata em suas partes íntimas. O tubérculo lançava raizes e estabelecia um campo asqueroso. E os “fardados”, por nojo, as deixavam em paz. Essa é uma metáfora do rompimento, da libertação – que, na verdade, constituía outra terrível prisão. Essas moças tinham a síndrome chamada de “teta assustada”. Como a protagonista que, traumatizada, tinha medo de sair sozinha, fugia dos homens e se apavorava diante de uma farda.
Ela tenta de todas as maneiras enterrar a mãe de maneira digna mas não tem dinheiro e se emprega na casa de uma pianista para conseguí-lo. Aí, uma simbologia envolve a música: a moça só se expressa cantando, como a mãe. A pianista se prepara para um recital. Mulher branca e fria, não conseguia transmitir emoção e determina que a empregada cante sempre, prometendo dar-lhe uma conta de um colar arrebentado, a cada canção. No recital, sai-se bem e, em seguida, manda a moça embora sem lhe dar as contas do colar. Como se lhe sugasse a emoção e depois a jogasse fora.

A moça conhece o jardineiro da casa e sua bondade, abnegação e paciência acabam por conquistá-la. Ela rouba as contas e finalmente perde o medo e cria coragem para fazer a cirurgia e libertar seu corpo do estigma. Por amor. Esta é outra metáfora da libertação.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Mozart


Mozart

“ Enquanto escrevia estas páginas, caíram muitas lágrimas sobre a folha. Mas neste momento, o que está acontecendo? Oh, que alegria! À minha volta vejo voar uma quantidade de pequenos beijos! Ah! Peguei três; serão famosos!”

Estas comoventes palavras escreveu Mozart em outubro de 1790, para Constanze, sua mulher que estava ausente.

Acabo de ler o livro Mozart por trás da máscara, do escritor uruguaio e jornalista Lincoln R. Maiztegui Casas (São Paulo, Planeta, 2006), que escreve para o El Pais, um dos mais importantes jornais da Espanha. Gostei muito, embora faça algumas ressalvas e quero comentá-lo com vocês.
Apaixonado pela música de Mozart, o autor revela que sua motivação foi a “ira e repulsa” que sentiu ao assistir o filme Amadeus, de Milos Forman baseado na obra de Peter Schafer, “...história absurda, inverossímel, mentirosa e ofensiva [...] ao músico mais genial de todos os tempos. [...] Foi a obra mais repelente que vi em minha vida...”. Comenta o desserviço à imagem de Mozart que milhões de espectadores no mundo passaram a associar a uma eterna criança boba, de risada escandalosa... um palhaço.
Sempre percebi esse perigo no filme, ainda mais por ser ele visualmente bonito e chamativo, fácil de enganar os incautos que não conhecem a verdadeira história. Minha reclamação estava há anos travada na garganta. Faço minhas as palavras do escritor e me invade a satisfação pela possível reparação da imagem de Mozart partindo de tão competente a categorizado autor.
O livro baseia-se em cuidadosa pesquisa e traz extensa lista das fontes consultadas, relacionadas na Bibliografia; e ainda notas explicativas. Perpassa a vida de Mozart desde o nascimento, sua inclinação para a música a partir dos três anos, a precocidade na composição, o relacionamento com o pai Leopoldo, as viagens tão bem sucedidas para apresentações nas cortes européias que começaram aos seis anos, a princípio com a irmã.
Dá para “convivermos” com o dia-a-dia do compositor, sentirmos o contexto artístico-cultural e social europeu, na segunda metade do século XVIII. O contato com Beethoven, a amizade com Haydn e o polêmico relacionamento com Salieri, tão deturpado historicamente no filme.
A rebeldia de Mozart, que se cansa de ser um empregado obedecendo ordens do
Arcebispo de Salzburg, Colloredo, e contra a vontade do pai, abandona o emprego e vai tentar a sorte em Viena, é destacada pela ousadia e coragem que nada têm a ver com uma criança “bobo-alegre”. Ele é o primeiro músico na história da Música ocidental que tenta ser independente, vivendo da sua música. Vai passar um sem número de provações mas abre caminho para os que vêem depois. Beethoven inclusive.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Episódios engraçados nos palcos da ópera

O teatro está lotado. A platéia muito elegante acompanha séria as notas agudas do soprano, a voz vigorosa do tenor, a harmonia do coro, a precisão absoluta do maestro. De repente, acontece o desastre. O inesperado, involuntário e hilariante. Episódios assim acontecem nos palcos mais importantes do mundo. Uma série deles é relatada por Hugh Vickers e publicada pela revista L´Express.

La Tosca, de Puccini,Ópera de S. Francisco, 1961. Esta ópera termina com um pelotão de soldados fuzilando o personagem Cavarodssi. Tosca, seu amor, desesperada se atira do alto da torre do castelo. Nessa apresentação, devido a imprevisto, o pelotâo de execução foi recrutado entre estudantes locais, muito entusiasmados porém totalmente ignorantes do libreto. Alguns minutos antes do espetáculo, o produtor explicou-lhes que quando o diretor fizesse um sinal deveriam entrar em cena com passo firme e cadenciado e no momento em que o oficial abaixasse o sabre atirassem no personagem. A pergunta dos estudantes, a seguir, era como fazer para sair de cena. A resposta: que saíssem com os protagonistas.(Essa é instrução padrão para figurantes nos Estados Unidos)

No momento certo, o público viu, então, doze soldados fazerem uma entrada ordenada e pararem de repente à vista de um homem e uma mulher (Tosca)- duas pessoas em vez de uma, como esperavam. Apontaram as armas hesitantes para o homem e ele se ergueu esperando resignado a morte porém lançando olhares significativos para a mulher (para que ela se afastasse). Os "soldados" entenderam mal e passaram a visá-la como alvo. Ela fazia gestos desesperados de negação, o que parecia normal já que ia ser fuzilada. E agora...era para executar os dois? Mas porque não estavam perto um do outro? Na dúvida, como a ópera se chamava Tosca, era mais lógico ser ela a vítima. O oficial ergueu o sabre e os estudantes executaram...Tosca. Logo após o que, para grande surpresa, viram Cavaradossi cair ao solo, há mais de dez metros de distância e Tosca, supostamente morta, se dirigir em prantos para ele. Estarrecidos, presenciaram Tosca correr para o muro da torre do castelo, subir e se atirar para a morte.

E então... o que fazer? A ordem era sair com os protagonistas. Só havia uma solução: em uma ação conjunta e decidida, todo o pelotão se atirou também da torre atrás de Tosca.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010


Lira suméria de cerca de 4.500 anos
(Reprodução de imagem da revista Concerto, junho, 2010)

O instrumento musical acima é a réplica de uma lira de 4.500 anos, descoberta por arqueólogos em 1929, no lugar onde na Antiguidade se situava a cidade de Ur, habitada pelos sumérios, hoje Tell el Mukayyar, entre Bagdá e Basra, no Iraque.
O original da lira, um dos mais antigos instrumentos musicais jamais encontrado, tinha uma decoração preciosa com madrepérola, lápis lazuli, calcário rosa, ouro e prata. Sua construção era um raro exemplo para estudo da possível concepção da música na época: pelo número das cordas , as possibilidades harmônicas e melódicas; pela extensão das longas cordas de tripa, a tessitura dos sons; na dimensão da caixa acústica, o volume sonoro, etc. Além do capricho estético com a beleza física do instrumento.
Este tesouro incalculável para a história da música estava no Museu Nacional do Iraque quando houve o bombardeio de Bagdá pelos americanos e aliados, em 2003. O Museu foi destruído e ficou a mercê dos saqueadores. Com isso, cerca de 170 mil peças únicas, de milhares de anos, atestados de culturas antiqüíssimas ... se perderam. E a lira foi encontrada despedaçada e sem os metais preciosos ... no estacionamento do Museu! É quase inacreditável!
Depois disso, um harpista chamado Andy Lowings, inconformado com a profanação da lira, dedicou anos a reunir artesãos e materiais iguais aos do original, como conchas de madrepérola do Golfo Pérsico, madeira de cedro de Bagdá, etc., e construiu a magnífica réplica da lira dourada de Ur, cuja imagem vemos acima.
Acesse também www.lyre.of.ur.com

domingo, 15 de agosto de 2010

Vejam vocês...

criei esse site, atendendo a sugestões de ex-alunos, para não romper uma interação na busca de conhecimentos, troca de experiências, crescimento interior e amizade que sempre permearam o nosso convívio acadêmico.

Devo confessar ... adorei a idéia !

Mas, vejam bem, gostaria que esse blog chegasse também a tantos amigos, muitos dos quais já me convidaram a participar de sites de relacionamento e aos quais não respondi. É que não havia ainda encontrado a minha hora e o meu jeito de entrar nesse universo e sentir-me legal.

Sentir como deve ser gostosa a expectativa de conhecer novas pessoas que podem chegar trazidas pelos antigos amigos...

Vamos então trocar idéias, postar depoimentos, fotos,informações, contribuições, perguntas, contar experiências, discutir controvérsias, divagar sobre nossas incertezas, criticar/ comentar músicas, concertos, livros, peças, exposições, sites, vídeos ... enfim... qualquer tema que quiserem.

Aqui o espaço é livre!
Exceção: política partidária.

sábado, 14 de agosto de 2010





Quero destacar aqui um DVD que acabei de adquirir chamado A vida de Mozart, de 1991, (bicentenário da morte do compositor) originalmente uma minissérie européia de três episódios filmada em Salzburgo, Praga, Viena e outras locações históricas. Foi escrita por Zdenek Mahler, um dos maiores especialistas em Mozart até hoje. As músicas são executadas com instrumentos de época pela Wiener Akademie Orchester. Tem a duração de 150 minutos. Foi produzido pela Versátil e a Beta Film.
Pela minha avaliação é um bom filme, muito bonito, quase um documentário feito com seriedade e compromisso com a história da vida e da obra de Mozart.
As fotos acima são imagens tiradas do DVD.

sexta-feira, 13 de agosto de 2010



LUDWIG VAN BEETHOVEN
(Bonn, 1770-Viena, 1827)
“No mundo da arte, como em tudo que diz respeito à criação,
o objetivo é a liberdade e a força de ir sempre mais além”

Creio que todos os amigos sabem da paixão que tenho por Beethoven, sua música, seus ideais de liberdade, fraternidade universal... por isso, quero falar sobre ele, aquí.


4 de Julho de 1776 – Independência dos Estados Unidos
14 de julho de 1789 – em Paris, a multidão enfurecida ataca a fortaleza da Bastilha, liberta 7 prisioneiros e desfila pelas ruas exibindo as cabeças dos guardas assassinados espetadas em paus. 3 anos depois é proclamada a República da França e o exército dos cidadãos cerra fileiras ao som da nova canção patriótica a Marselhesa. Luís XVI e Maria Antonieta são guilhotinados e um obscuro tenente da artilharia, Napoleão Bonaparte começa a preparar-se para ascender ao poder.
1792 – George Washington é presidente dos Estados Unidos.
Haydn está no auge da fama e o corpo de Mozart jaz numa campa de indigentes no cemitério de Viena.
Este contexto histórico é lembrado por Claude Palisca e Donald Grout (História da música ocidental)

Em 1787, um jovem músico alemão de nome flamengo ( pelo avô) é enviado a Viena para estudar com Mozart. Tem 17 anos e chama-se Ludwig. van Beethoven. A permanência é curta pois sua mãe morre em Bonn e ele volta para assumir a família ( 2 irmãos). Chegara a tocar para Mozart que lhe profetizara um futuro brilhante.
Beethoven recebera a primeira formação musical – insatisfatória- do pai, cantor da capela de Bonn. Sua infância fora infeliz: o pai, alcólatra e brutal pretendera transformá-lo em menino prodígio, a exemplo de Mozart. Tirava-o da cama de madrugada para exibi-lo aos amigos ao regressar da taverna. Mesmo assim teve um grande mestre, Neef, e freqüentou a Universidade como ouvinte. Tocava órgão, cravo, violino, viola, violeta; era exímio improvisador
Aos 12 anos acompanhava no cravo a orquestra da ópera de Bonn, substituindo seu professor. Era protegido do Príncipe Eleitor (o Arcebispo) Max Franz. Aos 14 anos foi nomeado oficialmente organista-assistente da Corte de Bonn. Aos 18 anos tocava violeta na orquestra da ópera. Aos 21 anos tinha prestígio excepcional junto à nobreza de Bonn.

Em 1792, aos 22 anos, chega outra vez a Viena, com carta de seu protetor, Conde de Waldstein, o já compositor e pianista Beethoven (viajara 800km de carruagem por uma semana). Haydn estivera em Bonn, ouvira composições de Beethoven e recomendara ao Arcebispo que o enviasse à Viena para estudos mais aprofundados. Não se sabe ao certo o que B. aprendeu com Haydn mas as lições continuaram até 1794, quando este foi para Londres e B. teve outros professores, inclusive Salieri.
Pouco mais de 10 anos após ter chegado à Viena, Beethoven é conhecido em toda a Europa como o maior pianista e compositor para piano do seu tempo e como compositor de sinfonias à altura de Mozart e Haydn. Tinha prestígio na sociedade, freqüentava as mais nobres famílias, tinha mecenas generosos mas não se curvava para receber favores; mantinha sua independência e tratava-os com certa rudeza. Procurava não escrever música por encomenda. Escrevia para um público ideal, universal, como uma expressão de si mesmo, de sua individualidade e sua época histórica.
Beethoven começou a atuar em um momento da maior importância histórica: novas e poderosas forças que começavam a se manifestar na sociedade o afetaram profundamente e repercutiram em sua obra. Tal como Napoleão ou Goethe, viveu as gigantescas convulsões que vinham se fermentando ao longo do séc. XVIII e que finalmente eclodiram com a revolução francesa.
Historicamente, a obra de Beethoven é construída no estilo clássico mas as circunstâncias externas e a força criativa do seu gênio inquieto levaram-no a transformar essa herança e avançar para características fundamentais do período romântico.
Beethoven desenvolveu sua obra na atmosfera do movimento literário do pré-romantismo alemão, de 1770 a 1790, inspirado nas idéias de Rousseau ( o homem nasce livre; todo homem é igual na a natureza) que os alemães chamavam de Sturm und drang ( Tempestade e Paixão ou Impulso): culto à natureza, libertação do indivíduo, primazia do gênio, da emoção, da sensibilidade; reação contra o racionalismo e o classicismo.
Mas acontece uma tragédia que faz de Beethoven um solitário. Desde os 28 anos apresenta perturbações auditivas. Aos 31/32 anos dá-se conta que está ficando surdo. Esta surdez, o mais terrível dos males para um músico, vai se agravando até que aos 50 anos, 1820, mergulha em silêncio total. Não percebe mais som algum.
Aos 32 anos, aterrado com a idéia de que possam perceber sua enfermidade. escreve uma carta aos irmãos, descoberta após sua morte, que ficou conhecida como Testamento de Heiligenstadt para ser lida depois que morresse. Nela relata de maneira comovente o seu sofrimento que chegou a lhe inspirar o suicídio.

Personalidade

Intransigente, detestava mentira e hipocrisia; idealismo absoluto sem concessões; comportamento selvagem ao mesmo tempo generoso, fiel, humanitário, fraternal

Obra - o humanismo da Revolução Francesa é o substrato ideológico da sua obra.

-Cunho pessoal; expressão direta da sua individualidade;
-Novidade de concepção e força de pensamento;
-o pensamento movia-se num plano tão elevado que sentia dificuldade de fazer música para libreto de ópera porque tratava de pequenos atos, situações corriqueiras;
- modificação da linguagem e das formas tradicionais;
-forma sonata tomou proporções inéditas ( multiplicidade de temas; desenvolvimentos longos e complexos; longas codas; dissimulação das linhas divisórias entre as partes dos andamentos, andamento scherzo)
-idéias de caráter dinâmico e impetuoso que brincam com as estruturas simétricas do classicismo -1ª vez que se usa trombone em sinfonia- na Quinta
- exploração intencional dos temas e motivos até o limite de suas potencialidades

1ª Fase da obra– até 1802 (32 anos) – clássico. Assimila a linguagem do seu tempo e vai descobrindo a sua própria: Quartetos de cordas op. 18, 10 primeiras sonatas p/ piano(até op. 14), as 2 primeiras sinfonias.

2ª Fase - 32 / 45 anos – independência, inovações, rupturas, elementos românticos. Sinfonias 3ª a 8ª, ópera Fidélio, aberturas, 2 concertos p/ piano e o conc. p/ violino, quartetos op. 59 ( Razumowisky), sonatas p/ piano até op. 90. (Período tranqüilo, próspero, mús muito tocada, aplausos até no estrangeiro, mecenas generosos, encomendas dos editores, finanças favoráveis.)

3ª Fase - cerca de 1816 em diante – 45/56 anos – a surdez que o fazia perder o contato com os sons e o mundo ao seu redor, tornava-o cada vez mais fechado e taciturno, irascível, desconfiado; tinha problemas com o sobrinho. Com o silêncio, volta-se para a concentração e o mundo interior onde só as notas existiam. As composições tomam um caráter cada vez mais abstrato, a linguagem cada. vez mais concentrada. Nas últimas obras explora temas e motivos até a última potencialidade; dá efeito de continuidade obscurecendo linhas divisórias. A feição abstrata, universal, manifesta-se no recurso ao contraponto, criação de efeitos invulgares, invenção de novas sonoridades.
As derradeiras obras: as cinco últimas sonatas, Variações Diabelli, Missa Solemnis, últimos quartetos, Nona Sinfonia – são a culminância da genialidade, da perfeição, do ideal estético, do belo musical; obras criadas no silêncio profundo da mente do autor ao qual era negada a percepção de qualquer mínimo resquício de som.
O coral da Nona Sinfonia revela os ideais éticos de Beethoven: a liberdade e a fraternidade universal do homem, tendo como base a alegria do amor de um pai celestial.

Só raros contemporâneos compreenderam suas últimas obras. Discute-se o romantismo de Beethoven. O componente revolucionário, o espírito livre, impulsivo, misterioso, demoníaco, a mús como expressão pessoal, fascinaram a geração romântica.

A música de Beethoven aciona a alavanca do medo, do espanto, do horror, do sofrimento e desperta um anseio infinito que é a essência do romantismo” ( T. A. Hoffman)

Beethoven foi o gênio mais disruptivo da História da Música. Ele criou um mundo novo. Após ele, nada mais pode ser como antes.

A força dessa música interior encoraja as virtudes mais altas. Faria andar um paralítico e transformaria em herói ou santo o mais abominável malfeitor. A música de Beethoven desperta sentimentos de justiça e liberdade tão profundos ... que os ditadores deviam desconfiar dela. Na época trágica do domínio nazí, o simples ritmo do princípio da 5ª Sinfonia: UUU -- percutido nos tímbales significava para os ouvintes clandestinos da BBC a revolta e a esperança. Quanto à Nona Sinfonia - é o hino da nossa civilização. (Roland de Candé)

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Foi editado agora em 2010, pela Zahar, com tradução de Anna Hartmann Cavalcanti, o livro Beethoven escrito em 1870 por Richard Wagner, cuja capa ilustra este texto. O grande compositor homenageou Beethoven, a quem admirava, no centenário de seu nascimento. É um livro de caráter intrinsecamente estético com três abordagens principais na primeira das quais fica explícita a influência que Wagner sofreu de Schopenhauer para quem a música expressa a sabedoria suprema com uma linguagem incompreensível à razão. O livro explica a diferença entre as outras artes e a música: as primeiras são do domínio da bela aparência; a música é essência, arte sublime que pode despertar o êxtase do ilimitado. A segunda abordagem mostra, sobretudo , que para Beethoven não importava tanto mudar as formas mas sim expressar um novo mundo ao revelar ao mundo exterior seu próprio mundo interior. Em terceiro lugar, enaltece a relevância da música para a transformação do mundo moderno e da civilização alemã. Beethoven, por meio de sua música, desempenha o papel de redentor da cultura alemã e um dos grandes benfeitores da humanidade.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010





A todos os ex-alunos

Vale para todos vocês, algumas palavras ditas na formatura da turma de 2009 que tive a alegria de paraninfar:

Queridos ex-alunos
Confesso que tentei escrever um discurso convencional de paraninfo mas a retórica não ficou boa. Não combinava conosco.

Deletei tudo e fiquei imaginando um caminho cujo percurso compartilhamos nesses anos de convivência acadêmica e que assegurou um espaço de afetividade entre nós. Percorremos um continuum maravilhoso na história da música da humanidade, um espelho do tempo de cada povo, cada cultura, fosse ela erudita ou espontânea, em sua singularidade e pluralidade.

O começo deste caminho pode ter sido um piano de mais de cem anos com castiçais e velas para iluminar a partitura – o que constitui uma base sólida e cheia de ternura. Mas não deve ser o fim. O fim é o inesperado, o novo, o instigante; apóia-se na reinvenção – portanto um recomeço. Lembremos uma vez mais as palavras de John Cage: “... procure trilhar sempre novos caminhos ... você poderá se surpreender.”

O privilégio de termos como instrumento de expressão a música, e o trabalho com a Faculdade de Música Carlos Gomes, uma escola diferenciada pelo ensino interdisciplinar e humanizado, nos diz que a excelência na arte extrapola os limites do conhecimento em si e da realização pessoal e profissional – importantes, é claro – mas também repousa sobre atitudes abertas como a solidariedade, a cooperação, a renúncia ao egoísmo, o respeito pelas diferenças e pela natureza. Em suma, a arte pode integrar a construção de um ser humano completo para uma humanidade em harmonia (literalmente) e feliz.
É o que desejo a vocês: que a música os faça ... felizes!
Obrigada.

sábado, 31 de julho de 2010

Falando de Folclore

Na história do homem, em todos os tempos, a necessidade de resposta a problemas e situações gera uma busca de conhecimentos naturalmente subordinados ao contexto ambiental e social. Na aquisição desses conhecimentos, criam-se códigos e símbolos que constituem cultura e identificam uma sociedade. O que caracteriza a sociedade são os interesses e necessidades comuns compartilhados e suas soluções. Na construção da cultura, são fundamentais as relações de família, grupos sociais, meio ambiente, conhecimentos adquiridos, crenças, trabalho e produção, estudo, economia, política e outros. Estas categorias são interdependentes e inter-influentes e responsáveis pela feição própria de uma cultura. E neste contexto sócio-cultural do qual somos agentes, recebendo e produzindo cultura, é que formamos a nossa identidade.

Folclore é uma das formas de representar, assumir, expressar, imaginar, idealizar, transmitir a identidade de uma sociedade, uma região, uma nação.

“Folclore é constituído pelos saberes populares selecionados como elementos valiosos e identificadores de cada povo. As diversidades regionais marcam as características predominantes; indicam os padrões culturais aceitos pela maioria dos componentes do grupo social; mostram as habilidades desenvolvidas, as soluções criadas para resolver seus problemas; evidenciam a adaptação ao meio ambiente e as razões que determinam este ou aquele modo de vida. Situam a comunidade no tempo e no espaço; apresentam as contribuições étnicas recebidas, numa interação natural. ”

Esta formulação, devemos à Professora da UFRS, Dra. Rose Marie Agrifoglio( Para compreender e aplicar folclore na escola, 2000, p.8)
. Com Rossini Tavares de Lima, aprendemos a acrescentar uma palavra importante na definição de folclore: espontânea. Folclore é a cultura espontânea em uma sociedade letrada. É uma cultura intrínseca à natureza humana, empírica, articulada ao contexto social do seu local de ação e criação e revestida das especificidades: aceitação/difusão na interação social.

Segundo Renato Almeida:

“São modos de pensar, sentir e agir que determinam o comportamento dos grupos onde se perpetuam. São fatos vivos e em perpétua transformação, ligados ao passado, adaptando-se continuamente ao presente e cumprindo sempre o seu destino de atender a necessidades mágicas, religiosas, artísticas, econômicas, médico-sociais, lúdicas, etc., dos seus portadores. Seu caráter é persistir, modifica-se sem cessar, faz empréstimos e trocas,
ajusta-se, transmuda-se para sobreviver e traz consigo resíduos imemoriais das forças
primitivas, terror, magia, superstição, em cujo meio se precipitam essências imanentes
da sabedoria humana. ” ( Inteligência do folclore,1974, p. 43))

O Folclore- disciplina independente- pertence ao campo das ciências sociais. Tendo em vista uma ação permanente de interpretação de fenômenos, comumente tem uma postura interdisciplinar em suas análises. Por isso, identifica-se com metodologias das ciências antropológicas como a Antropologia Cultural ou Etnologia, a Etnografia, e articula-se diretamente com a Sociologia; vale-se também da História, da Geografia, da Psicologia, Economia, Arte, hoje inclui também a Política, e outras pertinentes a temas específicos.

A UNESCO em sua Recomendação Sobre a Salvaguarda do Folclore diz textualmente: “...folclore faz parte do legado universal da humanidade e é um poderoso meio de aproximação entre os povos e grupos sociais existentes e de afirmação de sua identidade cultural.” Daí sua importância social, econômica, cultural, política e seu papel na história dos povos; e também o seu lugar na cultura contemporânea.

sábado, 24 de julho de 2010

MOZART

"Enquanto escrevia esta página, caíram muitas lágrimas sobre a folha. Mas, neste momento, o que está acontecendo? Oh, que alegria! À minha volta vejo voar uma quantidade de pequenos beijos ! Ah! Peguei três; serão famosos! "

Isto escreveu Mozart em outubro de 1790, para Constanze, sua mulher que estava ausente.

Acabei de ler o livro Mozart por trás da Máscara, de Lincoln R. Maiztegui Casas (Editora Planeta, 2006). O autor explica o motivo da obra: ira e revolta pelo filme Amadeus, de Milos Forman, baseado na obra de Peter Schaffer, "...história tão absurda, inverossímel, mentirosa e ofensiva, uma agressão infundada ao músico mais genial de todos os tempos."(p. 11) Fala nos milhões de espectadores que viram o filme e associaram a imagem de Mozart a uma criança ridícula e boba com uma risada histérica. Com base em fontes documentais e uma série de biografias sérias, inclusive nas cartas de Mozart, o autor demonstra a inconsistência do perfil limitante e vislumbra o verdadeiro Mozart por trás da máscara: homem inteligente, de cultura superior a dos músicos da época, vontade imperiosa, consciente da sua grandeza, preocupado com os problemas do seu tempo. Foi o porta voz da libertação dos músicos até então relegados à condição servil. Evoluiu do catolicismo conservador aos princípios revolucionários da maçonaria e teve coragem de compor A Flauta Mágica, ópera simbolicamente maçônica, no momento em que a maçonaria começava a ser alvo de severa repressão. No último ano de vida trabalhou acima dos limites de resistência física, simulando otimismo e bom humor, ocultando da esposa o estado debilitado de saúde, na tentativa de superar os problemas financeiros.
Quando morreu, pessoas paravam na frente do seu apartamento acenando lenços brancos; no dia seguinte, uma multidão desfilou diante do corpo.
O enterro em vala comum não foi por extrema pobreza e sim porque era o lugar indicado para se enterrar os músicos, oficialmente considerados criados. Com excessão daqueles que pudessem adquirir seu próprio jazigo mas o custo era muito alto.
Desmitificando a história de Mozart, diz o autor Lincoln Casas: "Este livro é um ato de amor"