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domingo, 27 de fevereiro de 2011

História e Estórias das lutas de cristãos e mouros

A HISTÓRIA E AS ESTÓRIAS DAS LUTAS DE CRISTÃOS E MOUROS NO IMAGINÁRIO POPULAR
Ritos, signos e símbolos

Esta é uma história milenar que sobrevive em estórias e eventos diversos no folclore brasileiro, as quais destacam Carlos Magno como herói do cristianismo. Estórias de poetas populares contadas e cantadas em prosa e verso, principalmente na literatura de cordel. Estórias também como textos-matrizes das representações dramático-coreográficas das congadas, alardos e cheganças, com seus cantos e ritmos de conjuntos instrumentais. E é mais explícita ainda nas versões da cavalhada, grande teatro a cavalo no qual cavaleiros armados revivem com intensa simbologia a guerra santa das cruzadas.
Com toda a sua fabulação-mitificação, a raiz deste mote mouros/cristãos, encontra-se na história real do ocidente, na Idade Média, e reforça o capítulo da imposição da supremacia cristã sobre o islamismo.

Vamos lembrar dois destes espetáculos dramáticos que pertencem ao universo do teatro folclórico brasileiro: a cavalhada de Pirenópolis, GO, que documentei pela última vez em 1992, e o alardo denominado Mouros e Cristãos, em Alcobaça, BA., registrado por Fernanda Macruz em 1987.

A Cavalhada, uma encenação eqüestre ao ar livre, representa a guerra religiosa entre cristãos e mouros e a vitória do cristianismo culminando com o batismo dos mouros. Os “exércitos”, levando suas bandeiras são organizados em dois grupos cada qual com seu rei, embaixador e soldados. Os cristãos são Carlos Magno e os Doze Pares de França, vestidos de azul; os mouros, o Sultão de Alexandria e seu exército, trajando vermelho. (Em alguns lugares há uma princesa e um príncipe, filhos do rei mouro. A jovem acaba raptada pelo inimigo e converte-se ao cristianismo. Na cavalhada de Pirenópolis não há estas personagens).
Usando três armas, garrucha, lança e espada, por três dias os cavaleiros simulam batalhas em campo aberto, precedidas pelas embaixadas: mensagens insultuosas trocadas pelos reis por intermédio de seus embaixadores e cujo teor é conclamar o inimigo a trocar de religião. Os combates são simbolizados pelas evoluções realizadas no campo, pelos cavalos habilmente cavalgados e na mais alta velocidade. O galope é marcado pelo ritmo da música tocada pela banda de música. Os mouros são derrotados e convertidos à fé cristã em ritual de batismo que comove o público presente. Seguem-se jogos de confraternização que são memória dos torneios medievais e dos exercícios militares dos cruzados. Os principais são o Jogo da Argolinha, no qual uma pequena argola pendurada em alta trave é retirada pela ponta da lança do cavaleiro a galope e entregue à dama que ele deseja homenagear. O outro jogo é o Tira Cabeça ou Cabecinhas, sendo estas, réplicas confeccionadas em massa de papel e que colocadas sobre estacas são atingidas pelas três armas.

Em Alcobaça, sul da Bahia, vamos encontrar o alardo chamado Mouros e Cristãos. Alardo é teatro dramático folclórico, na mesma linha da congada, que simula luta entre dois grupos. São duas facções inimigas: os “soldados mouros”, que roubam a imagem de S. Sebastião, cuja festa se comemora, levando-a sorrateiramente para o outro lado do rio que banha a cidade; e os “soldados cristãos”, guardiões da fé, responsáveis pela devolução do ícone à igreja. Os dois grupos têm espadas como arma. Legítimo teatro ao ar livre, conta com a participação da comunidade e desenvolve-se em dois dias. O ponto culminante é o episódio das embaixadas e a guerra entre os rivais quando os mouros atravessam o rio em três barcos vermelhos conduzindo o estandarte com a meia-lua e a disputada imagem. Os cristãos exigem a sua conversão, o que evidentemente não é aceito e inicia-se a batalha – luta de espadas pelas ruas da cidade - enquanto o “santo” fica protegido no forte que é uma palhoça improvisada com folhas de coqueiro. No dia seguinte, em combate final a imagem é recuperada, os mouros batizados e vendidos aos presentes para se obter dinheiro para a comemoração da vitória com bebidas alcoólicas.
Temos aí duas representações cheias de rituais, signos e símbolos com os mesmos mecanismos e ideologia: o poder da fé cristã, a verdadeira, vencendo os seguidores de Maomé, os infiéis. O eterno maniqueísmo do bem contra o mal. No entanto, observa-se que a simbologia primordial do poder cristão é ofuscada pois o que conta mesmo é o costume de repetir um ritual considerado “antigo”, lúdico, de congraçamento social, que envolve e entusiasma as comunidades.

Mircea Eliade explica:

“O símbolo, o mito e o ritual expressam em planos diversos e com os meios que lhe são apropriados, um complexo sistema de afirmações coerentes sobre a realidade final das coisas. No entanto, é essencial que compreendamos o profundo significado de todos esses símbolos, mitos e rituais para podermos traduzi-los para nossa linguagem.”

Cada ritual tem um modelo, um arquétipo e para se tornar real, tem que repetir o arquétipo, isto é, o modelo exemplar, o paradigma. O arquétipo no nosso caso inclui-se na categoria “rivalidade entre dois grupos”. Sua repetição é como uma renovação no imaginário popular.
O nível simbólico está sempre presente na relação entre o bem e o mal. No imaginário popular, o mouro, o turco, o árabe ou qualquer outro muçulmano era o blasfemo, o cruel, o sanguinário que renegava a Deus e não uma pessoa com religião própria e direito de exercê-la. Os cristãos eram sempre os piedosos, corretos e estavam no caminho do bem. Este conceito ou preconceito historicamente construído é impactante no período das cruzadas.
Lembrando a História, após a primeira cruzada, em 1095 foi criada a Ordem dos Cavaleiros Templários, uma milícia de religiosos, soldados de Cristo, para proteger a Terra Santa, o Santo Sepulcro e os peregrinos europeus que se dirigiam a Jerusalém. A ordem recebeu enormes recursos das cortes européias, tornou-se rica e poderosa, passou a guardar riquezas de terceiros, emprestou dinheiro como um banco internacional. Seus sacerdotes-soldados faziam voto de castidade e pobreza. Quem escreveu as regras que regiam a Ordem foi o abade francês Bernardo de Clairvaux, o maior e mais respeitado intelectual europeu da época e depois canonizado como São Bernardo. Pois bem, deve-se a ele a instituição do “malicídio” - o direito de matar infiéis porque eram os representantes do mal. Essa concessão opunha-se ao homicídio, proibido nos 10 Mandamentos.

O simbolismo das cores mantido através de séculos resulta da reinterpretação popular de conceitos surgidos na tradição cristã em algum momento da Idade Média, influenciados pelos paramentos litúrgicos: o azul é a cor do céu, do cosmo, da paz, do manto de Nossa Senhora. O vermelho é cor do fogo, do demônio, do pecado. A dicotomia azul /vermelho, por extensão, exerce forte influência na mentalidade popular.

Dos signos, considere-se a espada, um signo icônico, vale dizer, aquele que tem a forma da coisa que representa. A espada é a arma adequada aos chefes e conquistadores. É arquétipo no qual está contida a significação de todas as outras armas. Tem qualificação para atuar nos mais diferentes contextos sociais e sua importância é justificada pela função de proteger o ideal de justiça. Jerusa Pires Ferreira, que escreveu Cavalaria de Cordel, revela como a espada é lúdica e mágica no ato de cortar o ar e tirar faíscas do aço desafiador. Sua nobreza, relacionada ao rito medieval da sagração do cavaleiro, de compromisso com valores morais, faz dela objeto sagrado de significação cultural ímpar.

Os estandartes dos exércitos, assim como sua indumentária, principalmente a indispensável capa bordada, oferecem rico material de símbolos e signos. Na bandeira vermelha a meia-lua é um signo índice, isto é, aquele que indica. Indica que aquele exército é mouro. O mesmo para a cruz sobre fundo azul, signo índice que aponta o exército cristão. O vermelho da capa dos mouros é enriquecido com abundantes bordados, brilhos e ornamentos cujo significado, explicado pelos participantes, é que eles invadiram o território cristão e se apossaram de todas as suas riquezas. Isso explica o luxo das capas. Já os cavaleiros do outro partido tem símbolos cristãos como cálice, hóstia, pomba do Divino.

Falemos das “embaixadas”, os arrogantes desafios verbais que os reis cristão e mouro trocam entre si, primeiro por meio dos “embaixadores” e depois pessoalmente e que incitam o início da guerra. Carlos Magno simboliza o monarca cristão “que professa a lei de Cristo e adora as Três Pessoas da Santíssima Trindade”. O Sultão da Mauritânia é o chefe mouro, “senhor de meio-sol e meia-lua e de todo o mar Vermelho”. Professa a lei de “Mafoma” (Maomé).
Na história da guerra santa, houve vários episódios nos quais os cristãos se viram acossados em suas fortalezas, cercados por exércitos islâmicos infinitamente superiores em número de soldados. Os Templários, apenas como um dos exemplos, viveram essa situação frente ao grande e poderoso chefe islâmico Saladino que, embora inimigo, era considerado respeitoso e leal. Trocaram mensagens – embaixadas - na vã tentativa de convencer o opositor a se render. Vitorioso , Saladino na batalha de Hattin, foi o responsável pela queda de Jerusalém, em 1187.
A representação do modelo “embaixada” é tão forte na tradição popular do Brasil que se transporta a determinadas congadas de aculturação africana, nas quais é enviada uma embaixada à personagem rainha Ginga, de um reino africano.

A história de Carlos Magno tornou-se literatura popular na Espanha influenciada pelas canções de gesta francesas, difundidas pelos jograis que acompanhavam as comitivas dos cavaleiros em romaria aos lugares santos. Principalmente Santiago de Compostela. Da Espanha passou a Portugal onde era o livro mais lido pelo povo no fim do século XIX. Trazido ao Brasil, teve ampla aceitação popular como livro ou folheto de cordel.
A história relatada é fantasiosa pois situa Carlos Magno lutando nas cruzadas, o que não é real. De certa forma, ocorre com Carlos Magno a transformação de uma figura histórica em herói mítico, fato não incomum e que fornece às canções épicas seus heróis. A memória do povo, que é ahistórica, encontra dificuldade em guardar imagens de acontecimentos reais. Ela funciona por meio de estruturas diferentes: categorias, no lugar de episódios e arquétipos, no lugar de personagens históricos. No imaginário popular, Carlos Magno acabou lutando contra infiéis na Espanha, o que nunca ocorreu.

Mircea Eliade explica:

“Tão logo a personalidade histórica recebeu acolhida junto à memória popular, ela foi abolida e sua biografia obteve uma completa reconstrução que se conformava com as normas do mito.”

O irônico é que uma narrativa épica tão antiga,cheia de fantasias, que deu origem ao mote cristãos/mouros, continue tão atual no século XXI. Basta que se abra um jornal do dia...


Leituras deste texto: Mito do Eterno Retorno, de Mircea Eliade; Cavalaria de Cordel, de Jerusa Pires Ferreira; Cavalhadas no Brasil, de Niomar Souza
http://pt.wikipedia.org/wiki/Saladino#Conflitos_com_os_Cruzados
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ordem_dos_Templarios%C3%ATrios#
http://pessoas.hsw.uol.com.br/ordem_dos_templarios3.htm

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Centro de Música Brasileira, um valor nacional

O Centro de Música Brasileira

Osvaldo Lacerda e Eudóxia de Barros, presidente e vice-presidente do Centro de Música Brasileira, estão convidando os músicos, estudiosos e amantes da música brasileira, a se associarem a esta instituição que vive um momento decisivo em sua trajetória, ameaçada que está de encerrar suas atividades. O CMB passa por dificuldades financeiras decorrentes de falta de patrocínios estáveis governamentais ou empresariais, até mesmo para pagar cachês aos artistas que participam de seus concertos. Eventuais patrocínios têm ocorrido na realização de concursos nacionais que contam com participantes de vários Estados brasileiros. E a Cultura Inglesa cede seu auditório à avenida Higienópolis, 449, em São Paulo, para os concertos.
Mas as demandas são maiores e um quadro robusto de sócios seria de grande valia, neste momento.

Lembremos que: 1. o CMB é entidade civil sem fins lucrativos;
2. foi fundado em 18/12/1984 e entrou em atividade em abril de 1985, tendo completado 26 anos ativíssimos, dedicados à música brasileira;
3. visa defender, promover e divulgar a nossa música de todas as épocas e estilos;
4. privilegiou o apoio a jovens iniciantes instrumentistas, cantores e regentes;
5. promoveu concursos nacionais, concorridíssimos, em todas as áreas da música.

Uma assinatura anual de sócio ou a contribuição de um colaborador, dá direito a assistir todos os concertos da temporada de 2011. Valores: R$ 100,00, individual e R$ 150,00, o casal.
Formas de pagamento: cheque nominal cruzado ao Centro de Música Brasileira enviado pelo Correio à rua Santarém, 269, CEP: 01251- 040, S. Paulo, SP
Ou depósito no Bradesco, agência 297-6, cc.54134-6
Centro de Música Brasileira CNPJ: 54.240.023/0001-00
É lamentável constatar como os órgãos públicos responsáveis pela cultura no Brasil são dirigidos por pessoas displicentes, sem nenhum conhecimento, preparo ou consciência para gerenciar uma área da cultura que seja um tesouro nacional, como é a nossa música. Se não fosse isso, o CMB estaria assegurado como um valor nacional.