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sexta-feira, 22 de abril de 2011

Semana Santa e Páscoa no Folclore Brasileiro

SEMANA SANTA E PÁSCOA NO FOLCLORE BRASILEIRO
Tempo mágico, cheio de “coisas proibidas e coisas que dão sorte!”

QUARESMA
Antes de falarmos na Semana Santa, vamos lembrar a quaresma, tempo intermediário entre o carnaval e a Páscoa. Quaresma, período de penitência para católicos e ortodoxos, marcado por tabus e proibições, dura 46 dias a partir da 4ª feira de cinzas até o domingo da Ressurreição. Há notícias desta tradição desde o século III.
Na quaresma acontece uma notável expressão do catolicismo-folclórico chamada Recomenda de Almas, Encomendação das Almas ou Penitentes. Constitui grupos de pessoas que cumprem um ritual no qual se articulam significados religiosos, mágicos e simbólicos a partir do conceito alma dos mortos na visão popular. Nas sextas feiras da quaresma, tarde da noite, no silêncio e na escuridão, culminando na sexta feira da Paixão, estes grupos percorrem casas, igrejas (fechadas nessa hora), cemitérios, cruzeiros ou capelinhas de beira de estrada, pedindo orações para as almas perdidas, por meio de uma cantoria específica. Geralmente são almas de pessoas que não tiveram morte natural como os assassinados, queimados, os afogados – estes, “as almas das ondas do mar”. Em alguns grupos os componentes, que podem ser homens e mulheres, cobrem o corpo com um lençol branco simbolizando a mortalha. Quando cantam diante de uma residência, os habitantes não devem acender as luzes, abrir portas ou janelas nem se comunicar com os cantores pois correm o risco de ver as almas penadas que os acompanham.
A matriz das Recomendas de Almas está no culto aos mortos presente nos ritos funerários de culturas ancestrais que com o advento do cristianismo foram reinterpretados de acordo com as normas da Igreja.
A música vocal é uma harmonia composta de várias vozes, às vezes até sete, em estilo responsorial. E o acompanhamento instrumental é feito com matracas, algumas vezes com o zumbidor também chamado berra-boi. Este é um pequeno artefato retangular achatado construído de madeira, cerâmica ou pedra que, amarrado na ponta de um barbante e girado no ar sobre a cabeça do executante (um aerofone livre, portanto) produz um som forte, insistente e perturbador. É conhecido desde culturas muito antigas e nos mais diferentes lugares, como Austrália, Europa, África, índios sulamericanos. Curioso é que é sempre proibido às mulheres ouví-los e mais ainda, manuseá-los.

SEMANA SANTA
Ao lado das cerimônias oficiais promovidas pela Igreja católica, encontram-se, com muito vigor, os rituais e costumes espontâneos da Semana Santa praticados no contexto da cultura popular-folclórica. São um conjunto complexo de elementos que resultam da reinterpretação popular dos textos evangélicos e de conceitos europeus anônimos surgidos em algum momento da Idade Média. Por exemplo, no século VIII a Igreja proibiu os cristãos de tocar sinos (e músicas profanas) da 5ª feira ao sábado de Aleluia. Sugeriu que os substituíssem batendo pequenos pedaços de madeira como faziam os fiéis escondidos nas catacumbas quando não possuíam sinos e eram perseguidos pelos soldados romanos. Essa teria sido a origem das matracas que se tornaram instrumentos oficiais da Semana Santa.
Dentre os rituais folclóricos da Semana Santa podemos observar as grandes procissões: a do Enterro, cheia de figuras bíblicas, a das Dores que é o encontro de Nossa Senhora com o Filho, aquelas chamadas Fogaréu, onde se conduzem tochas acesas para simular a procura de Jesus para que seja preso, e outras – organizadas pelo povo, não pela Igreja. Da mesma forma, as representações teatrais da Paixão de Cristo efetuadas pelas coletividades por iniciativa própria.
Há um grande número de proibições, crendices e práticas mágicas. Jejum sexual é das proibições mais generalizadas. Outras: não casar, não fazer festa, não bater em crianças, não trabalhar. Para dar sorte: visitar sete igrejas; guardar as flores que enfeitarem o esquife do Senhor Morto na procissão do Enterro; comprar aneizinhos e correntes de prata na 6ª feira da Paixão.

PÁSCOA
A Páscoa é pré-cristã e provém do costume pagão muito antigo de comemorar a entrada da primavera no hemisfério norte, coincidindo com o equinócio de primavera, quando termina o longo e rigoroso inverno e retorna o calor, o sol, a vegetação; os coelhos saem das tocas e são vistos pulando pelos campos. A vida se renova.
O Antigo Testamento descreve a pessach que é a passagem da escuridão para a luz (a Páscoa), festa que comemora a libertação, por Moisés, do povo hebreu escravizado pelo faraó do Egito. É a conhecida estória das sete pragas enviadas por Deus, a fuga dos hebreus e a abertura do mar Vermelho para permitir sua passagem.
A Páscoa cristã, já como ritual do Novo Testamento, não é mais do que a reinterpretação daquele episódio: a ressurreição de Cristo é o símbolo da libertação dos hebreus ou a passagem da escuridão para a luz; a óstia é o pão ázimo (sem fermento – na fuga dos hebreus não havia tempo para esperar a massa fermentar) e torna-se metáfora do corpo de Cristo; o vinho, tradicional da ceia dos hebreus, significa o sangue de Cristo – tudo representado na missa da Páscoa e nas missas tradicionais da cristandade.
Em inglês a Páscoa chama-se easter, derivado de Eostre, deusa germânica da fertilidade, celebrada no equinócio da primavera com seu símbolo o coelho.
Na Escócia a Páscoa é conhecida como Paiss.

O COELHO
O coelho, em muitos países, é o totem da Páscoa porque simboliza a fertilidade (reproduz-se muito), vale dizer, o recomeço da vida. No hemisfério norte, no início da primavera,o animalzinho saía das tocas onde passara o inverno e passava a saltitar pelos campos. Como símbolo pascal, foi trazido ao Brasil pelos imigrantes alemães cerca do século XVIII. Em alguns lugares o coelho é substituído, como em Paris por exemplo,que se encontra a galinha da Páscoa.

OVOS DE PÁSCOA
O ovo contém em si uma vida nova. A ressurreição, portanto. Em muitas culturas antigas, como na chinesa,nas cortes francesas no século XVIII, etc., tinha esse significado e ovos de ouro e pedras preciosas eram dados como presente a pessoas importantes.

A DATA DA PÁSCOA
A Páscoa é uma festa móvel anual cuja data é referência para se estabelecer as outras datas festivas. A primavera no hemisfério norte tem início no dia do equinócio de primavera: 21 de março. No primeiro domingo de lua cheia a partir de 21 de março, a cada ano, comemora-se a Páscoa. Este calendário obedece a uma tabela lunar estabelecida por um astrônomo grego chamado Meton, em 430 antes de Cristo. Meton tabulou um ciclo de 19 anos solares e 235 meses lunares chamado Número Áureo que estabelecia o ano com 365 dias aproximados. Pela relativa precisão e praticidade, foi utilizado nos cômputos eclesiásticos.
Tendo como referência a Páscoa, determinam-se o carnaval, 46 dias antes, e Pentecostes, 50 dias depois.

A QUEIMA DE JUDAS
Provém do rito ancestral do Fogo Novo, de origem hebraica que sobreviveu no rito romano recodificado. O Fogo Novo comemorava festivamente o fim do inverno no hemisfério norte quando as comunidades acendiam grandes fogueiras ao lado dos templos e os sacerdotes benziam o fogo. Geralmente rapazes saíam em bandos gritando : “Fogo Novo!”
A igreja cristã adaptou o ritual pré-cristão aos seus desígnios, primeiro denominando-o de Fogo de Judas e depois induzindo a queima do boneco que simulava o traidor de Jesus. É uma prática encontrada em quase toda a Europa.

Leituras sobre este texto: Uma leitura transdisciplinar do fenômeno sonoro (Sobre Recomenda de Almas) de Sonia Albano (org); Folclore das festas cíclicas, de Rossini Tavares de Lima

Procissão do Fogaréu em Goiás Velho





A Procissão do Fogaréu em Goiás Velho
em seus aspectos de Folclore

Meia-noite, as luzes da cidade apagadas, o som de um ritmo especialmente lúgubre da fanfarra e uma multidão com tochas acesas seguindo, em marcha acelerada, um grupo de encapuzados...
Quem chegar desavisadamente à cidade de Goiás, GO, na noite da Quarta-feira de Trevas, durante a Semana Santa, e não conhecer as tradições religiosas locais, por certo levará um susto. Talvez imagine que por algum processo sobrenatural tenha retrocedido à Idade Média. Estará porém presenciando a Procissão do Fogaréu, um dos rituais que dão início às solenidades da Semana Santa.
Goiás Velho como carinhosamente é chamada a cidade, que foi capital do Estado até 1937, é fruto do ciclo da mineração do ouro cuja memória está guardada nos velhos casarões coloniais, nas igrejas antigas, no chafariz no meio da praça, no calçamento e traçado mal alinhado das ruas e becos. Foi fundada em 1727 pelo bandeirante paulista Bartolomeu Bueno da Silva. Tem à sua volta, como uma moldura, a Serra Dourada e é cortada pelo Rio Vermelho – o mesmo que nos idos de 1674, Bartolomeu Bueno da Silva, o pai, cognominado o Anhangüera (significa diabo velho), ameaçou incendiar iludindo os índios Goiá ao colocar fogo em uma bacia com aguardente para obrigá-los a lhe mostrar as jazidas de ouro. Um grande bandido, o Anhangüera, cuja memória devia ser execrada! Levou o ouro e os índios Goiá aprisionados para serem vendidos como escravos.
A Vila Boa de Goiás, em 1745, recebeu como vigário um padre espanhol chamado D. Perestelo de Vasconcelos Espínola. Segundo os registros da Igreja local, ele aí implantou as cerimônias da Semana Santa semelhantes às de sua terra natal na Espanha inclusive a Procissão do Fogaréu que recebeu as adaptações inevitáveis dadas às carências do lugar e as grandes diferenças históricas, geográficas, econômicas, sociais.
Atualmente a Procissão do Fogaréu se realiza na 4ª feira de Trevas, tem início cerca de meia- noite na porta da igreja da Boa Morte (hoje Museu de Arte Sacra) e tem a finalidade de reconstituir simbolicamente a busca e a prisão de Jesus. Um grupo de homens encapuzados carregando tochas acesas abre o cortejo. São os farricôcos. Farricoco ou farricunco, segundo o Novo Dicionário Universal Português, Editora Tavares Cardoso & Irmãos, Lisboa, é o que acompanha à tumba; penitente de procissão coberto com capuz.
Os farricôcos vestem-se com longas túnicas de cetim de cores diferentes, usam um capuz cônico com orifícios para os olhos e a boca, carregam grandes tochas de prata e têm os pés descalços como podemos ver nas fotos que ilustram este relato. A caminhada é feita em marcha acelerada ao som dos tambores de uma fanfarra e a multidão que acompanha desordenadamente também leva pequenas tochas. A fanfarra tem cinco toques, isto é, cinco marcações rítmicas diferentes, criadas especialmente para a ocasião.
O percurso deste cortejo inclui uma passagem na Igreja do Rosário onde se vê, no alto da escadaria, a mesa desfeita da Santa Ceia. Um farricoco pergunta ao “hospedeiro”que ali se encontra, onde está Jesus. Este responde que já ceou e foi para o Horto das Oliveiras. A procissão retoma a marcha acelerada e vai até a Igreja de São Francisco que simboliza o Horto das Oliveiras, igreja que possui uma enorme escadaria formando um ângulo reto. Só um encapuzado, vestido de branco, sobe os degraus e entra. Os demais posicionam-se abaixo, guardando a entrada..
Dá-se então o momento mais solene e impactante do evento: o farricoco assoma ao portal da igreja trazendo nas mãos um estandarte de linho branco pintado com a imagem do torso de Jesus em tamanho natural que eleva e exibe para a multidão silenciosa. Ao mesmo tempo, outro deles executa num clarim o tradicional toque de silêncio. Jesus está preso. A emoção toma conta dos presentes e muitas pessoas choram. (Foto acima)
Com a representação simbólica de Jesus prisioneiro à frente, e o ritmo da fanfarra, a procissão retorna à Igreja da Boa Morte, o estandarte é baixado vagarosamente até o chão, todos apagam suas tochas e se retiram calados. Está encerrado o ritual.

Uma observação a respeito do estandarte: ele foi pintado no século XIX por Veiga Vale, famoso artista goiano cujas obras, hoje valiosíssimas, são reconhecidas até no exterior. Especial para a procissão do Fogaréu, espelhava Jesus de corpo inteiro com quase dois metros de altura, tinha frente e costas e era “vestido” em uma tábua larga. Durante alguns anos em que não se realizou a procissão, ficou guardado em um baú da igreja e acabou sendo atacado por insetos que lhe destruíram a parte inferior. Por isso, hoje só tem o torso de Jesus.


Excerto de artigo publicado no D. O. Leitura, caderno literário do Diário Oficial do Estado de S. Paulo em março de 1991, proveniente de pesquisa realizada em Goiás por vários anos, inclusive 1991.
Fotos do site: http://www.vilaboadegoias.com.br/fogareu.htm