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terça-feira, 3 de maio de 2011

A dinâmica do Folclore na vivência atual

A DINÂMICA DO FOLCLORE NA VIVÊNCIA ATUAL
( Excerto de trabalho que apresentei no IV Seminário de Ações Integradas da Comissão Nacional de Folclore – em São Paulo, setembro de 2008)

O tema desta exposição é a dinâmica do folclore na vivência atual, ou seja, num mundo capitalista, globalizado, tecnológico, informatizado, e ainda com extrema rapidez e fronteiras ilimitadas de comunicação. A dinâmica cultural é responsável por transformações permanentes na cultura folclórica sem que esta se distancie substancialmente da gênese da tradição. Folclore-cultura acompanha a evolução da sociedade absorvendo as inovações, reelaborando-as e assumindo para si uma parcela do novo, moderno, tecnológico, porém reinterpretado de maneira espontânea. Por esta razão, Folclore integra de maneira importante a identidade sócio-cultural de grupos, sociedades, nações, até continentes. Lembremos a Recomendação sobre a Salvaguarda do Folclore, da UNESCO, que reza: “...folclore faz parte do legado universal da humanidade e é um poderoso meio de aproximação entre os povos e grupos sociais existentes e de afirmação de sua identidade cultural”. (Garcia, 2000).
Queria destacar ainda que folclore não é privilégio do “povo” (classe de menor poder aquisitivo) mas que permeia todas as classes de uma sociedade moderna.
Daí se insere a relevância epistemológica do processo cognitivo do folclore e a necessidade de se atingir um patamar mais profundo na essência desta cultura: o Significado
O Significado é uma dimensão indispensável na interpretação da cultura. Escreveu Clifford Geertz: “...o homem é um animal amarrado a uma teia de significados” e definiu o conceito de cultura como essencialmente semiótico: “...ciência interpretativa à procura do significado”. Em semiótica temos: o signo ( a representação do objeto), o objeto e o interpretante . A palavra Significado é usada para indicar “o interpretante declarado de um símbolo” (Peirce, 1977). Portanto só existe a significação quando há uma mente interpretando em qualquer nível de espaço / tempo, nação, cultura, local, etc.
O meu argumento para esta reflexão baseia-se na experiência pesquisa-ensino de folclore por mais de vinte anos onde a atualização do folclore é fartamente comprovada, assim como a sua mobilidade entre as classes sociais, o que fica evidente nos relatórios de história-de-vida dos alunos, os “documentos-ego”, que fazem parte da avaliação no meu curso de folclore. Segue uma pequena amostra de comunicação folclórica via computador.
Do relatório de César Albino (1995) - paulista, professor de saxofone e prática de conjunto. Enfocando o folclore na intercomunicação pela Internet, o aluno analisou tópicos de seus e-mails, os “emoticons”, símbolos visuais de emoções, [...] Segue o e-mail recebido de uma amiga.

“Lembra-se da língua do “p”? pois é, temos a língua do BBS também.Seguem alguns exemplos, coisas de almanaque...vc sabe... É verdade que alguns símbolos não são nem usados, mas veja que alguns vc deve reconhecer de outras MSGs. Se alguém quiser colaborar com o acervo, please...!!!

: - ( Triste
: - ) Alegre
: - ] Pequeno sarcasmo
* Papai Noel
: - Q Fumando cigarro
[ 8 - ] Frankenstein
: - p Língua de fora
: - x Beijinho, beijinho
: - # Censurado
} : - > Diabinho (culpado)
; - > Piscando o olho
8 - ) Eu uso óculos
( : - ) Careca
{8 < > Pato Donald
B - ) Batman
: - { > Bigodudo
[ ] Abraço
<:*) Palhacinho
:-* Oops!
: >>> Gargalhada

Se ainda não entendeu nada, aproxime a sua cabeça do ombro esquerdo para ver cada símbolo.
Um forte [ ] cheio de :- ), ta bom?”
(Assinatura)

O Folclore
Há numerosos abordagens conceituais a respeito de Folclore-cultura que não caberiam na extensão deste estudo. Conceito não é dado ou repassado pela ideologia; o conceito é criado a partir da prática. Assim sugerimos, embasados em Rossini Tavares de Lima (!985) e na experiência própria, o seguinte: Folclore constitui a cultura espontânea que participa da sociedade letrada e tem a caracterizá-la a livre aceitação coletiva; sua difusão se dá na interação social por meio da imitação e do condicionamento inconsciente.
Folclore é um conjunto complexo de manifestações e conhecimentos desenvolvidos livremente no contexto social e cujas normas são legitimadas pelo comportamento padronizado, vale dizer, costumes. Costume é o “conjunto de modelos de comportamento operantes em determinada comunidade” (Satriani, 1986). Folclore permite a interpretação do homem por meio do seu sistema de símbolos criado assistematicamente no aprendizado, na invenção, na imitação, na reinterpretação. Folclore representa a concepção de mundo e a experiência de vida de sociedades para as quais tem função e significado.
Folclore-cultura é uma das formas de representar, construir, assumir, expressar, imaginar, idealizar, transmitir a identidade de uma sociedade, de um grupo social, de uma região, de uma nação. O que explica a sua constante atualização. As outras formas de representação da identidade, no universo cultural dos grupos humanos contemporâneos, são construídas pelas vias da cultura erudita e da cultura de massa, e se relativizam de acordo com o contexto sócio-econômico, político, ambiental. Folclore interage com as culturas erudita e de massa e pode se apropriar de elementos seus reelaborando-os espontaneamente por meio da reinterpretação. ( Ex: Menino da Porteira, canção da cultura de massa apropriada como “ponto” de candomblé) . Roberto Benjamin (2004) refere que a aceitação coletiva “ torna possível considerar folclóricos os fatos originários da cultura da elite e da cultura de massa que tenham sido aceitos e reinterpretados pelo povo”. Vale a reciprocidade: quando as culturas erudita e de massa vão beber nas fontes do folclore. (Exemplos: a escola nacionalista com Villa-Lobos e tantos outros; Marinheiro só, do candomblé, na MPB. ) Podemos inserir aqui o conceito de “circularidade”, identificado por Bahktin (apud Ginsburg, 1987), a “circulação fluida” citada por Roger Chartier ( apud Hunt, 1992) e outros cientistas sociais.
Por ser vivência e experiência, o Folclore, cultura informal, atualiza-se acompanhando a evolução da coletividade, adentra a modernidade, navega na globalização e sente-se à vontade com a nova tecnologia. Podemos refletir junto com Renato Ortiz que condena o pensamento da evolução linear do tempo que define o passado como anacronismo no presente quando o que acontece é que a globalização “caracteriza-se pela emergência do novo e a redefinição do velho” (Ortiz, 2007, p.10). No mesmo contexto convivem diferentes temporalidades. É desnecessário opor tradição a modernidade, local a global. Estudando a moderna tradição brasileira, esclarece Ortiz (2001) que no Brasil há uma dinâmica de interpenetração entre o tradicional e o moderno. Como se fosse uma tradicionalização do moderno. O processo cultural brasileiro é instigante e contraditório: à frente, uma modernidade utópica e ao mesmo tempo a tradição que traz o passado ao presente. Há uma ruptura não resolvida para realização do moderno o que traz sempre um contexto de complexidade.

O espontâneo
Discutindo o “espontâneo”, termo polêmico, e o “informal”, vamos colocar: espontâneo vem do latim sponte, spontaneus = de livre vontade, voluntário. No dicionário brasileiro: espontâneo = voluntário; que se desenvolveu sem cultura (sic); natural . E o verbete: informal = isento de formalidade; o que não é imposto . Os dois termos especificam a cultura que chamamos de folclore.
Podemos refletir sobre o “espontâneo”: tudo é espontâneo e nada é espontâneo. Com exceção dos atos biológicos, praticamente todas as ações humanas nascem espontaneamente, embora a maior parte delas, voluntária ou involuntariamente acabe por se enquadrar em determinações alheias à vontade inicial. (Por exemplo, um jovem escolhe de livre vontade estudar música e se encaminha a uma instituição especializada. Ali, porém, terá que se inserir no sistema e seguir normas impostas mesmo que contrariem a sua vontade). Por outro lado, nada é espontâneo uma vez que o ser humano tem que se adaptar ao meio ambiente e às leis sociais ( educação convencional, governo, política, economia e outros). O “espontâneo”, “o que não é imposto” é preservado pelos costumes, pelo senso comum e está implícito na aceitação coletiva, esta sim, espontânea, com liberdade de escolha. Para Roberto Benjamin(2004), as expressões folclóricas “ nascem da comunidade, não surgem de decretos e portarias; não se aprendem nas escolas através de exercício sistemático mas com a convivência, de forma quase inconsciente e progressiva...”

O folclore é universal e tradicional em seus temas e motivos, que devem ser considerados invariantes. É regional e atualizado na ocorrência das variantes que são o resultado da criatividade do portador do folclore e de sua comunidade. [...] Os portadores de folclore não são, portanto, nem ágrafos, nem pré-lógicos e não vivem marginalizados em guetos, isolados do conjunto da sociedade brasileira ainda que o seu acesso a bens materiais e imateriais seja restrito. (Benjamin, 2004, p.22-23)

Tradição
Tradição em folclore só pode ser compreendida como um traço que vem do passado, tem significado e função no presente e projeção para o futuro (podendo ou não se perpetuar). Renato Almeida (1974) escreveu que a tradição folclórica é “ a experiência humana que vai do passado ao futuro e é sempre presente, atual e viva, um elo de continuidade”. Admite permanentes invenções, transformações de valores e uma constante improvisação. O elemento qualitativo depende menos do tempo do que da receptividade do grupo social. Não se despreza a influência do passado mas não se pode admitir que seja ela “ essência substancial do folclore”. Há uma recriação infatigável do povo e a aceitação dos fenômenos se dá pela sua função atual, não por ser resíduo do passado. Cada invenção ou descoberta pode ser incorporada pelo povo ao seu patrimônio cultural ao ser reinterpretada em nível de folclore. Benjamin (2004) afirma : “ A tradição é a matriz do fato folclórico à qual as restrições e renovações devem ser fiéis”. E acrescenta que ela “é entendida hoje como uma continuidade, onde os fatos novos se inserem sem uma ruptura com o passado, mas que se constroem sobre esse passado...” .

Alguns livros que embasam este texto
ALMEIDA, Renato. Inteligência do Folclore. 2 ed., Rio de Janeiro: Editora Americana; Brasília: INL, 1974.
BAJTIN, Mijail. La cultura popular em la Edad Media y en el Renacimiento.
Madrid: Alianza Editorial, 1987.
BENJAMIN, Roberto. Folkcomunicação na sociedade contemporânea. Porto Alegre:Comissão Gaúcha de Folclore, 2004.
BURKE, Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
CHARTIER, Roger. Textos, impressões, leituras. In HUNT, Lynn, A nova história cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GARCIA, Rose Marie Reis. Folclore. Para Aprender e aplicar folclore na escola. Org.
Porto Alegre: Comissão Gaúcha de Folclore/ AL do Estado do Rio Grande do Sul, 2000.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC-Livros Técnicos e Científicos Editora S. A.,1989.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
LIMA, Rossini Tavares de. Abecê do Folclore. 6 ed., São Paulo: Ricordi, 1985.
LIMA, Rossini Tavares de. A Ciência do Folclore. São Paulo: Ricordi, 1978.
ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.
______________ Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 2006.
PEIRCE, Charles S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva S. A., 1977.
SATRIANI, Luigi M. Lombardi. Antropologia cultural e análise da cultura subalterna. São Paulo: Hucitec, 1986.