Ciclo da Semana Santa no Folclore Brasileiro
Tempo simbólico, cheio de “coisas proibidas e coisas que dão sorte!”
Quaresma
É o período intermediário entre
o fim do carnaval na 4ª feira de cinzas e a ressurreição de Cristo no domingo
de Páscoa. Para os cristãos são 40 dias de penitência, oração e jejum
destinados à preparação para a Páscoa.
Na realidade, 46 dias corridos mas os 6 domingos não contam porque já são dias santificados.
Quaresma é abreviação da palavra
“quadragésima” da frase em latim QUADRAGESIMA DIE CHRISTUS
PRO NOBIS TRADETUR (No quadragésimo dia Cristo será entregue por
nós).
A
quaresma surgiu cerca do ano de 350 d.C. quando a Igreja aumentou os dias de
preparação para a Páscoa que eram até então só 3: quinta, sexta e sábado - o
Tríduo Pascal.
No imaginário popular,
inconscientemente, quaresma é a representação de um tempo simbólico, tempo de
expiação da culpa da humanidade por ter entregue Jesus à morte – uma
ideia construída pela Igreja. A quaresma é repleta de mitos: pode aparecer
lobisomem, casamento realizado não dá certo, comer carne vermelha é pecado e
outros.
Na quaresma acontece uma notável
expressão do catolicismo-folclórico chamada Recomenda de Almas, Encomendação
das Almas ou Penitentes. Constitui grupos de pessoas que cumprem um ritual no
qual se articulam significados religiosos, mágicos e simbólicos a partir do
conceito alma dos mortos na visão popular. Nas sextas feiras da quaresma, tarde da noite, no silêncio
e na escuridão, culminando na sexta
feira da Paixão, estes grupos percorrem casas, igrejas (fechadas nessa hora),
cemitérios, cruzeiros ou capelinhas de beira de estrada, pedindo orações para
as almas perdidas, por meio de uma
cantoria específica. Geralmente são almas de pessoas que não tiveram morte
natural como os assassinados, queimados, os afogados – estes, “as almas das ondas do mar”. Em alguns
grupos os componentes, que podem ser homens e mulheres, cobrem o corpo com um
lençol branco simbolizando a mortalha.
Quando cantam diante de uma residência, os habitantes não devem acender as
luzes, abrir portas ou janelas nem se comunicar com os cantores pois correm o
risco de ver as almas penadas que os acompanham.
A matriz das Recomendas de Almas está
no culto aos mortos presente nos ritos funerários de culturas ancestrais que
com o advento do cristianismo foram
reinterpretados de acordo com as normas da Igreja.
A música vocal é uma harmonia
composta de várias vozes, às vezes até sete, em estilo responsorial. E o
acompanhamento instrumental é feito com matracas, algumas vezes com o zumbidor também chamado berra-boi.
Este é um pequeno artefato retangular achatado construído de madeira, cerâmica
ou pedra que, amarrado na ponta de um barbante e girado no ar sobre a cabeça do
executante (um aerofone livre, portanto) produz um som forte, insistente e
perturbador. É conhecido desde culturas muito antigas e nos mais diferentes
lugares, como Austrália, Europa, África, índios sulamericanos. Curioso é que é
sempre proibido às mulheres ouví-los e mais ainda, manuseá-los.
A matraca tem origem antiga, no
Oriente, na Índia, China, Japão, Tibet e no meio muçulmano onde substituía as
campainhas, proibidas pelos cristãos. Na Europa, derivou da norma proveniente
da Igreja romana que proibia tocar os sinos das igrejas da quinta-feira santa
ao sábado de Aleluia em respeito à morte de Jesus. A determinação apareceu no
século VIII. Sua padronização, porém, se deu nos fins do século XII, início do
século XIII. Quem divulgou a interdição
na França foi Simphosius Amarilius
(aluno de Alcuíno), que determinou aos fiéis que se contentassem em bater
pedaços de madeira, imitando o que faziam os cristãos primitivos reunidos nas
catacumbas para os rituais religiosos, por falta de sinos. Em conseqüência,
apareceram e se tornaram populares variados tipos de matraca (Lima, 1971).
A Semana Santa
Ao lado das cerimônias oficiais
promovidas pela Igreja católica, encontram-se, com muito vigor, os rituais e
costumes espontâneos da Semana Santa praticados no contexto da cultura popular-folclórica. São um
conjunto complexo de elementos que resultam da reinterpretação popular dos
textos evangélicos e de conceitos europeus anônimos surgidos em algum momento
da Idade Média. Por exemplo, no século VIII a Igreja proibiu os cristãos de
tocar sinos (e músicas profanas) da 5ª feira ao sábado de Aleluia. Sugeriu que
os substituíssem batendo pequenos pedaços de madeira como faziam os fiéis
escondidos nas catacumbas quando não possuíam sinos e eram perseguidos pelos
soldados romanos. Essa teria sido a origem das matracas que se tornaram
instrumentos oficiais da Semana Santa.
Dentre os rituais folclóricos da
Semana Santa podemos observar as grandes procissões: a do Enterro, conduzindo o
esquife do Senhor Morto, cheia de figuras bíblicas, com a participação da
Verônica que canta exibindo o sudário com o rosto de Jesus desenhado com sangue; a das Dores que é o encontro de Nossa
Senhora com o Filho; aquelas chamadas de
Fogaréu, onde se conduzem tochas acesas para simular a procura de Jesus para
que seja preso, e outras – organizadas
pelo povo, não pela Igreja.
Da mesma forma, as representações teatrais da
Paixão de Cristo efetuadas pelas coletividades por iniciativa própria que podem
se constituir em grandiosos espetáculos populares.
Há um grande número de proibições,
crendices e práticas mágicas. Jejum sexual é das proibições mais generalizadas.
Outras: não casar, não fazer festa, não bater em crianças, não trabalhar. Para dar sorte: visitar sete igrejas; guardar
as flores que enfeitarem o esquife do Senhor Morto na procissão do Enterro;
comprar aneizinhos e correntes de prata na 6ª feira da Paixão.
Páscoa
Páscoa, a festa mais importante do cristianismo, é
pré-cristã e provém do costume pagão muito antigo de comemorar a entrada da
primavera no hemisfério norte, coincidindo com o equinócio de primavera em 21
de março, quando termina o longo e rigoroso inverno e retorna o calor, o sol, a vegetação; os coelhos saem das tocas e são
vistos pulando pelos campos. A vida se renova.
O Antigo Testamento descreve a pessach (páscoa) dos hebreus que é a passagem da escuridão
para a luz, ritual que celebra a libertação, por Moisés, do povo hebráico escravizado pelo faraó do Egito. É a conhecida
estória das sete pragas enviadas por Deus, a fuga dos hebreus e a abertura do
mar Vermelho para permitir sua passagem.
A Páscoa cristã, como ritual do Novo
Testamento, não é mais do que a reinterpretação daquele episódio: a
ressurreição de Cristo é o símbolo da libertação dos hebreus ou a passagem da escuridão para a luz; a hóstia,
metáfora do corpo de Cristo é o pão ázimo (sem fermento – na fuga do Egito não
havia tempo para esperar a massa fermentar); o vinho, tradicional da ceia dos
hebreus, significou o sangue de Cristo – tudo representado na cerimônia da
Páscoa e na missa tradicional da
cristandade.
Em inglês a Páscoa chama-se easter, derivado de Eostre, deusa germânica da fertilidade, celebrada no equinócio da
primavera com seu símbolo o coelho.
Na Escócia a Páscoa é conhecida como Paiss.
A Páscoa é uma festa móvel anual cuja data é
referência para se estabelecer as outras datas festivas. A primavera no
hemisfério norte tem início no dia do equinócio de primavera: 21 de março. No primeiro domingo de lua
cheia a partir de 21 de março, a cada ano, comemora-se a Páscoa. Este calendário
obedece a uma tabela lunar estabelecida por um astrônomo grego chamado
Meton, em 430 antes de Cristo. Meton
tabulou um ciclo de 19 anos solares e 235 meses lunares chamado Número Áureo
que estabelecia o ano com 365 dias aproximados. Pela relativa precisão e
praticidade, foi utilizado nos cômputos eclesiásticos.
Tendo como referência a Páscoa, determinam-se
o carnaval, 46 dias antes, e Pentecostes, 50 dias depois.
O coelho, em muitos países, é o totem da Páscoa porque simboliza a
fertilidade, vale dizer, a conservação da espécie, o recomeço da vida. O mito foi
trazido ao Brasil pelos imigrantes alemães cerca do século XVIII
E o ovo contém em si uma vida nova. A ressurreição, portanto. Em
muitas culturas antigas, como na chinesa, tinha esse significado e ovos de ouro
e pedras preciosas eram dados como presente a pessoas importantes.
Mas em alguns lugares o coelho da
Páscoa é substituído, como em Paris por
exemplo, pela galinha .
Queima de Judas
Esta é realizada geralmente no sábado
de Aleluia. Provém do rito ancestral do Fogo
Novo, de origem hebraica que sobreviveu no rito romano recodificado. O Fogo Novo comemorava festivamente o fim
do inverno no hemisfério norte quando as comunidades acendiam grandes fogueiras
ao lado dos templos e os sacerdotes benziam o fogo. Geralmente rapazes saíam em
bandos gritando : “Fogo Novo!” A igreja
cristã adaptou o ritual pré-cristão aos seus desígnios, primeiro denominando-o
de Fogo de Judas e depois realizando
a queima de um boneco (costume comum na Idade Média) que simulava o traidor de
Jesus. É prática encontrada hoje em
quase toda a Europa.
Leituras sobre este texto: Uma
leitura transdisciplinar do fenômeno sonoro (Sobre Recomenda de Almas) de Sonia Albano
(org); Folclore das festas cíclicas,
de Rossini Tavares de Lima