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domingo, 23 de junho de 2013

De Carlos Drumond de Andrade a Ludwig van Beethoven


BEETHOVEN

                      Carlos Drumond de Andrade (1973)

Meu caro Luís, o que vens fazer nesta  hora

de antemúsica pelo mundo afora?

 

Patética, heroica, pastoral ou trágica,

tua voz é sempre um grito modulado,

um caminho lunar conduzindo à alegria.

Ao não rumor  tiraste a percepção mais íntima

Do coração da terra que era o teu.

Urso- maior uivando a solidão

Aberta  em cântico: entre mulheres

passando  sem amor. Meu rude Luís,

tua  imagem assusta na parede,

em  medalhão soturno sobre o piano.

Que tempestade passou em ti e continua

a devastar-te no limite

em  que a própria morte se socorre

da vida, e reinstala

o  homem na fatalidade de ser homem?

Nós, os surdos, não captamos

o  amor doado em sinfonia, a paz

em  allegro enérgico sobre o caos,

que  nos oferta do fundo

de  teu mundo clausurado.

Nós, computadores, não  programamos

a exaltação romântica filtrada

em  sonatino adágio murmurante.

Nós, guerreiros nucleares, não  isolamos

o  núcleo de paixão de onde se espraia

pela  praia infinita essa abstrata

superação  do tempo e do destino

que é a razão de viver, razão florente

e grave

 

Tanto mais liberto quanto mais

em  tua concha não acústica cerrado,

livre da corte, da contingência, do barroco,

erguendo  o sentimento à culminância

da  divina explosão que purifica

o  resíduo mortal, a angústia mísera,

que  vens fazer, do longe de dois séculos,

escuro  Luís,  Luís luminoso,

em nosso tempo de compromisso e omisso?

 

Do fogo em que te queimaste,

uma  faísca resta para incendiar

corações  maconhados, sonolentos,

servos  da alienação e da aparência?

Quem comporá a Apassionata do nosso tempo,

Quem  removerá as cinzas, despertará a brasa,

Quem  reinventará o amor, as penas do amor,

quem  sacudirá os homens do seu torpor?

 

Boto no pickup o teu mar de música,

nele me afogo acima das estrelas.
                                                                                (Revista OSESP,  nº 3, maio, 2013)
 
 

                                                    Estudo de Kloeber para retrato de Beethoven

 

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