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sexta-feira, 3 de junho de 2011

Do romance O Fidalgo e a Camponesa


O FIDALGO E A CAMPONESA:
um romance com final feliz

Este romance, registrei-o em Goiânia, GO., no ano de 1988, mas soube que era muito cantado na cidade Goiás Velho, GO, desde as primeiras décadas do século XX, onde posteriormente, tive oportunidade de documentá-lo. A primeira informante, em Goiânia, na época com 78 anos, Armênia Pinto de Souza, era professora e escritora e pertencia a uma família goiana de atávicas aptidões musicais. Havia dentre eles compositores de modinhas, valsas, canções populares, quase todos cantavam, inclusive na igreja, tocavam violão, piano, ensinavam música. O levantamento feito na cidade de Goiás levou-me às irmãs Lucy Gomes Pinto Veiga Jardim e Irany Gomes Pinto, de 80 e 78 anos respectivamente, conhecedoras do romance que fazia parte do seu dia-a-dia, desde crianças. Informaram que sua mãe, nascida em Goiás em 1882, sempre o cantou. Recordavam-se também de tê-lo visto representado em forma de teatro, com cenário e indumentária de época, no Colégio Sant’Anna, de irmãs dominicanas francesas, onde estudaram.
O Fidalgo e a camponesa conta, em forma de diálogo na primeira pessoa, o assédio de um rico aristocrata à uma humilde pastora que recusa o oferecimento de riquezas e faustos que lhe custariam a honra. A modesta camponesa mantém-se firme e despacha o arrogante fidalgo, o que acaba configurando uma reação às estórias nas quais as moças são sempre vitimadas e, às vezes, morrem no final. Como no romance da Silvaninha, por exemplo, vítima do amor incestuoso do pai, ou Iracema, martirizada pelo padrasto.
A temática dos romances conduz tradicionalmente a um desfecho trágico. Lembremos o romance de Dom Jorge e Dona Juliana, ele pertencente à nobreza e ela uma moça pobre, que acaba envenenando o amado ao saber que ele se casará com outra; o romance do Antoninho, garoto que mata o pavão do diretor da escola, é morto por ele e vingado pelo pai; os romances do ciclo do Boizinho, de caráter bem brasileiro, que canta as tristezas do boi, consciente de que vai sendo levado para o corte
Daí o título que dei a este texto: um romance com final feliz.
O gênero romance é definido por Rossini Tavares de Lima (em “Romanceiro Folclórico”) como poesia dramática cantada, eis que carrega o caráter intrínseco do drama, como se pode constatar pela sua presença no teatro folclórico. Às vezes pode servir de cantiga de ninar e até para brincadeiras infantís. Elemento essencial é a forma narrativa que comumente se inicia com um narrador, transfere-se aos personagens e retorna a ele, no esquema do romance tradicional ibérico. É um gênero universal, presente no cancioneiro ou romanceiro de grande parte das culturas européias. O termo Romance designava o uso da língua “romance”, vale dizer, do espanhol falado na Península Ibérica, ao contrário do usual latim. Os jograis, no século XIV chamavam “romanz” a velhos poemas cantados. Tavares de Lima reporta-se à ligação do romance com as modas ou modas- de- viola brasileiras, graças à cantoria de sentido narrativo.
Segundo Câmara Cascudo (“Dicionário do folclore brasileiro”), romances são poemas cantados que vêm dos séculos X, XI, XII - como as canções de gesta - recriados nos séculos XV e XVI. A princípio apresentados nas cortes, passaram depois ao contexto popular, buscando mais a emoção e o lirismo do amor, num processo de acomodação, inclusive abraçando novos motivos. Guardou, porém, o modelo antigo. Em Portugal, no século XVI, o romance esteve em voga, como nunca. Muito prestigiado na Península Ibérica foi trazido ao Brasil pelo colonizador, assim como para toda a América Espanhola.
O romance, em Portugal e Espanha, tem mais de uma conotação: primeiro, um gênero de composições, com determinadas regras; segundo, um período social bem definido e que deixou marcas indeléveis em tais composições. É o que ensina Amadeu Amaral, no livro “ Tradições populares” .
Em “Introducción a la música popular castellana e lionesa “(Burgos, Espanha, Junta de Castilla y León, 1984) Miguel Palacios Garoz documenta e discute a riqueza de romances que possui o folclore castelhano. Escreve que às vezes se lhe intercala um estribilho, a intervalos regulares, o que se fazia também em tempos antigos. Destaca o acervo de romances de temática religiosa, como: “Los mandamientos”, “Los sacramentos”, “Pajaritos de Santo Antonio”, e outros da Natividade, Quaresma e Páscoa. Acrescenta que os primeiros romances escritos datam do século XV, embora se saiba que existiam na tradição oral desde antes do século XIII.
Dentre os gêneros líricos- musicais do México, o “Corrido” é um dos suportes da literatura genuinamente mexicana, conservado em folhas soltas. Vicente T. Mendoza (“Corridos mexicanos”, México, Fundo de Cultura Economica, 1954) estuda sua procedência, do romance castelhano, nos temas épicos acerca de heróis e façanhas guerreiras; pelo que encerra de lírico, deriva da copla e da chácara: relatos sentimentais, principalmente amorosos, próprios para serem cantados. Em suma, o “Corrido” é um gênero épico-lírico-narrativo, em quadras de rima variável, forma literária sobre a qual se apoia a frase musical, composta geralmente de quatro membros. Relata fatos que motivam poderosamente a sensibilidade popular o que o aproxima do romance, não só pela forma como pela motivação.
Bruno Nettl, em “Música folklórica y tradicional de los continentes occidentales”, no capítulo em que analisa a música de França, Itália e Espanha, informa que crianças, em brincadeiras e jogos, costumam entoar “romancillos” de velhos tempos, com estórias e lendas que contam de amores e fatos ocorridos a reis e princesas ou se referem a milagres de santos. São narrações curtas, ingênuas ou pitorescas, de temática variada, que têm relação com o mecanismo da brincadeira. Algumas delas se prestam a jogos mímicos, com intervenção de passos de dança. Seu estilo é sensível, alegre, movimentado. Musicalmente, predomina o modo maior, a métrica de dois ou três tempos em combinações simples; o desenvolvimento melódico, embora variado move-se regularmente em fraseado simétrico.
Dois escritores portugueses, pai e filho, Joaquim Alberto e Fernando de Castro Pires de Lima, publicaram o livro “Romanceiro minhoto” (Porto, Portucalense Ed., 1943), com coletânea de 58 romances coletados na região do Minho, Portugal. Citam pesquisas de Carolina Michaëlis de Vasconcelos que fala da transmissão dos romances em folhas soltas, a princípio manuscritas, depois impressas. Mas acredita, a pesquisadora, que a transmissão mais eficaz deva ter sido através da oralidade: a palaciana, de corte em corte; a popular, de boca a boca. Lembra ela que nos séculos XV e XVI houve íntima comunhão e quase unidade de manifestações musicais entre Castela e Portugal. Havia intercâmbio de compositores e intérpretes entre as duas cortes.Gil Vicente, mesmo, criava e cantava “cantigas”. Os dois autores citados organizaram o cancioneiro mais ou menos por variantes temáticas, como o tema dos “meninos prodígios que falam antes tempo”; o tema “Bela Infanta” e variantes; o tema “Pastorinhas” e variantes, registrado por Almeida Garret
No livro História da Música Ocidental, de Grout. & Palisca (Lisboa, Gradiva, 1988) encontramos com o título de Trovadores e Troveiros, o seguinte:
“[...] A substância poética e musical das canções de trovadores e troveiros não é, regra geral, muito profunda .... Há baladas simples e baladas em estilo dramático que requerem ou sugerem duas ou mais personagens. [...] Um dos gêneros mais cultivados era a pastourelle (pastorela), um dos tipos de balada dramática. O texto de uma pastorela conta sempre a seguinte história: um cavaleiro faz a corte a uma pastora que, geralmente após a resistência inicial, acaba por lhe ceder; em alternativa, a pastora grita por socorro, aparecendo então o irmão ou namorado que põe o cavaleiro em fuga, não sem que antes seja travado um combate entre ambos. Nas pastorelas mais antigas toda a narrativa era monologada; o passo seguinte consistiu em fazer do texto um diálogo entre o cavaleiro e a pastora. Mais tarde, o diálogo passou a ser não apenas cantado, como também representado; quando se acrescentavam um ou dois episódios, surgindo o pastor em socorro de sua amada com um grupo de companheiros rústicos ... o resultado era uma pequena peça de teatro com música.”

Neste contexto poderia ser inserido o romance O Fidalgo e a Camponesa, não só pelo caráter pastoral e bucólico como pelo episódio da sedução caracterizando a arrogância do nobre rico e poderoso e o desrespeito à moça pobre e desprotegida, tendo porém um desfecho diferente. Estendendo-se para a questão de gênero, homem/mulher, a mulher humilde e modesta derrota o nobre fidalgo.
Este Romance, de raízes tão antigas e tradicionais, vindo do tempo dos trovadores, é vivo na prática e na função de narrativa lírica mantida pela oralidade. E abre portas a uma análise mais profunda, sob o ponto de vista literário, musical, sociológico, até mesmo um estudo de comportamento, isto é, psicológico, no aspecto moderno da emancipação da mulher. O que não é nossa proposta neste momento.

O FIDALGO E A CAMPONESA- eis o texto

“- Gentil pastora, ouve um estranho
deixa o rebanho, vem me escutar
pois que perdido há mais de um´hora
vago pastora neste lugar.

-Senhor bons dias, benvindo seja
tranqüilo esteja que a vila é perto.
Siga essa estrada bem direitinho
não há caminho mais curto e certo.

Extensas léguas hei caminhado,
estou prostrado não tenho ar.
Vê se me indicas qualquer um pouso
onde o repouso possa encontrar.

- Senhor bem vejo que vós sois nobre
meu lar é pobre vêde-o acolá.
Se aos vossos brios não há perigo
meu triste abrigo não longe está.

-Muito obrigado gentil morena
mas, ó que pena, não posso ir.
Tu meiga e bela, de encantos cheia,
cá desta aldeia deves fugir.

- Ah! Não que eu tenho vida folgada
sou muito amada de coração.
Meu nome adeja aos sons cadentes
dos versos quentes de uma canção.

- Isto que vale, bela serrana,
se uma choupana só tens por lar?
Deixa este sítio na soledade
vem à cidade viver, gozar.

- Ai, morreria lá na cidade
só de saudade da gente nossa.
A viver rica mas esquecida
prefiro a vida na minha choça.

- Mas se eu trair-te nada tu sofres,
dou-te os meus cofres, juro por Deus.
Habite eu pobre numa choupana,
tu, soberana nos paços meus.

- Ah, não aceito que é vil desdouro
guarde o tesouro meu bom senhor.
Para tornar-se rica princesa
a camponesa não vende amor

- És muito pobre pr´amor tamanho
segue o rebanho mulher grosseira
Ah, como és tola, como eu te iludo
não passa tudo de brincadeira.

- Se em vossas pompas, a vós senhores,
vendem amores as cortesãs,
essa fraqueza das damas nobres
não mancha as pobres das aldeãs! “

(Partitura acima. Clique para ampliar)

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