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sábado, 13 de novembro de 2010

Gilberto Mendes, o transmoderno

Gilberto Mendes, o transmoderno, e a
45 ª edição do Festival Música Nova

A mídia de São Paulo divulgou na semana de 15 a 21 de outubro, dentre os eventos do 45º Festival Música Nova, os mexicanos da Fragmentos Kafka, apresentando a Ópera 24, de Gyorty Kurtag, o conjunto de percussão Materiales Ensemble e o norteamericano Alvin Lucier com a obra Musicaficta. Todos artistas internacionais e representantes da música contemporânea.

Histórico do Festival Música Nova: Gilberto Mendes, juntamente com Willy Correia de Oliveira, Damiano Cozzela, Rogério Duprat e Júlio Medaglia, criou o Grupo Música Nova em 1962 e o lançou com o Manifesto Música Nova, no ano seguinte, num ambiente totalmente hostil ao experimentalismo. Para tornar pública sua visão do fenômeno musical, o Grupo contou com a participação do maestro Olivier Tony e a Orquestra de Câmara de S. Paulo e com o regente Klaus Dieter Wolf, e o Madrigal Ars Viva.
O Manifesto definia a postura do Grupo: compromisso total com o mundo contemporâneo; processo criativo partindo de elementos concretos em oposição ao idealismo; valorização dos meios de informação sendo a comunicação um ramo da psicofisiologia da percepção; a música como arte coletiva; educação musical, processo de aprendizado da linguagem, não na transmissão de conhecimento mas na integração à pesquisa; possibilidade do acaso controlado; semântica musical equilibrada entre informação semântica e informação estética face à criação-consumo; libertar a cultura brasileira das estruturas idológicas-culturais.
O impacto do Manifesto foi grande tendo atingido revistas especializadas no Brasil e exterior.
O Festival, frequentado por músicos de vanguarda do mundo todo, tem caráter internacional e tem oferecido primeiras audições de obras de compositores brasileiros e estrangeiros.
Gilberto Mendes foi e é até hoje a alma do evento. Para mantê-lo, as dificuldades enfrentadas não tiveram limites, ao longo desses anos. Só para se ter uma idéia, muitas vezes importantes compositores estrangeiros tiveram que ser hospedados em casa de amigos por faltar verba para pagar um hotel. Atualmente, o Festival conta com patrocínios e uso de incentivos fiscais.

Gilberto Mendes nasceu em Santos em 1922. O pai morreu cedo, ele teve de ajudar a família, foi funcionário público e bancário. Começou tarde a se dedicar somente à música. Estudou com Cláudio Santoro e Olivier Toni. A partir de 1962 frequentou os cursos de Darmstad, Alemanha, aperfeiçoando-se com Boulez, Henri Pousseur e Stockhausen. Foi professor de composição na Universidade de Brasília, na USP, em Universidade de Santos, na Universidade de Wisconsin, EUA, na PUC S. Paulo (Estética na Pós-Graduação), na Universidade do Texas, EUA. Recebeu inúmeros prêmios. A UNESCO divulgou sua obra Blirium A-9 escolhida pela Tribuna Internacional de Compositores. Ligou-se aos poetas concretistas Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatari, fazendo música concretista
A princípio serialista, foi pioneiro em música aleatória na década de 60, fez “música teatro” na década de 70, criou música concreta, microtonal, usou uma nova notação musical, praticou a mixed media, o minimalismo. É uma das figuras mais importantes da música brasileira atual. É considerado, no século XXI, um precursor do pós- modernismo na música.
Gilberto Mendes se considera um transmoderno, segundo suas próprias palavras, porque perpassou pelos domínios do modernismo.
Vamos lembrar algumas de suas obras emblemáticas que apesar de criadas em décadas passadas, continuam a ser um espanto.
No livro Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio (1999), de Heloisa de Araújo Duarte Valente, encontramos:

- Nascemorre - (1963, sobre poema concreto de Humberto de Campos)– aleatória e microtonal; para octeto vocal, percussão, fita magnética (opcional) e 2 duas máquinas de escrever. Estrutura: inexistência de alturas fixas, somente faixas de frequência; blocos microtonais. Exige notação especial: gráficos e diagramas; ruído como elemento estrutural: maracas, bongôs, batidas de pés e das máquinas de escrever. Estrutura do poema é fonte das estruturas temporais: 1,2,4,6 ou 1 3 6 9 tempos = às sílabas. Quanto à voz, quatro formas de emissão vocal contrastantes em intensidade; som aspirado em ff ; exploração fonética do D à qual o autor pede inclusão de um N.

Santos Futebol Music ( 1965)–para orquestra sinfônica, fitas magnéticas c/ narração de partidas de futebol, charanga e platéia. Conta com som concreto, som orquestral desprovido de melodia, participação do público, teatro musical (performance) e o espaço como construto musical. Tratamento especial da voz: falada/cantada desde motivos melódicos, vogais isoladas, fala a meia-voz, entoação de protesto, ruídos de qualquer natureza, expressões comuns aos gritos de torcidas como gool!.

- Motete em ré menor ( 1966) – para coro a capella sobre poema concreto de Décio Pignatari. Conhecido como Beba Coca-Cola. Glissando com voz nasalada, da região mais aguda à mais grave, arroto, sons aspirados, boca chiusa, falas estridentes, entonação “grotesca, irritada, rabujenta, imitando o Pato Donald,” voz de tenor cacarejada, sopranos, contraltos e baixos, ação cênica – tudo para transformar o som musical em algo semelhante ao ruído provocado por ânsia de vômito seguido do som do arroto: o som mais abominável que aparece em destaque. Um breve Teatro Musical Originalmente o poema se inspirava na pulsação dos luminosos em todo o mundo, anunciando o produto; demarcada melodicamente pelo acorde re-fa-la-mib, circunscrita ao pentagrama; blocos rítmicos de 6 compassos com os tempos 3-2-2-2-2-1.

- Oralia: Asthmatour (1971)- para vozes e percussão: pandeiro. maracas, crótalos e ação teatral, sobre texto de Antonio José Mendes. O ar é o leitmotiv da peça metalinguagem da propaganda, incluindo um jingle no final; explora intensamente sons respiratórios, vocais e bucais: estalidos de língua no céu da boca e nos dentes, gargarejos em alturas diferentes, inspiração, dispnéia asmática (e ruído do aparelho bombinha) ... além da enunciação característica do discurso publicitário; fala dramática (teatro musical) acrescida de elementos cênicos; fala imitando emissão afetada das garotas-propaganda, no final. Material abundante para abordagem do ruído: da percussão, palmas, estalos de dedos e modo especial como são trabalhados os ruídos da boca e da voz.

Ópera Aberta : Performance de fôlego e de músculos (1976)- Teatro música para cantora e halterofilista. Homenagem a Humberto Eco e sua Obra Aberta. É um contraponto a duas partes como consta no cabeçalho da partitura-bula. A cantora exibe seu fôlego que se acumula no tórax enrijecido em sua performance vocal; o halterofilista exibe seu tórax, seus músculo, obtidos graças a rigorosa preparação física.. É uma representação na qual música é apenas o fio condutor.
A maior diferença entre o teatro musical e o teatro convencional é que este último tem como fio condutor um enredo; o teatro musical não tem enredo verbalizado e é articulado sem lógica resultando em situações absurdas. A Ópera Aberta é uma sátira ao trabalho de bastidores empreendido pelo músico- atleta; tudo o que mostra é somente o exercício da ginástica representada pelos vocalizes que entrecortam as árias de ópera. Evidencia a desimportância do trabalho do cantor ( e do músico virtuose), sob a forma de teatro musical.
Voz- a cantora entra em cena vestida a caráter e começa a cantar e representar trechos variados de óperas entremeados de exercícios vocais destacando enlevo e encantamento com a própria voz que vai moldando, acariciando com as mãos como se a visse materializada. É enamorada da sua voz.
Corpo – pouco depois entra o halterofilista pulando corda, vestido a caráter e faz exercícios com halteres entremeados de exibições dos próprios músculos braçal, peitoral, dorsal. É um enamorado do seu corpo.
No canto esquerdo um grupo de 4, 5 pessoas sentadas de perfil p/ o público aplaude freneticamente gritando “bravo!”
Cantora e halterofilista são independentes, um ignora o outro até o momento em que a cantora percebe o parceiro, olha-o de alto a baixo entre surpresa e indignada e com mãos à cintura diz seu nome (que será o de algum personagem de ópera). Não consegue perturbá-lo e volta a cantar.
Finalmente o halterofilista toma conhecimento da cantora ao perceber que ela não consegue alcançar as notas cada vez mais agudas que tenta dar. Com intenção de ajudá-la, ergue-a do chão e a coloca sobre os ombros, dá uma volta no palco enquanto ela esperneia apavorada sobre seu ombro mas sem parar de cantar. E sai de cena lentamente.

Um conhecimento mais íntimo de Gilberto Mendes, a gente consegue assistindo ao DVD A Odisséia Musical de Gilberto Mendes, uma produção Berço Esplêndido, dirigida por Carlos de Moura Ribeiro Mendes. O filme conta com a participação da neta do compositor, narrando fatos de sua vida e aspectos de obras, além de depoimentos imperdíveis de Gilberto Mendes.

2 comentários:

  1. OI Niomar.

    Muito legal seu blog e sua iniciativa de conectar-nos...
    Muito obrigada por divulgar os cursos do meu atelier e também a perda do nosso amigo Vado.
    Hoje já faz um mês, por sorte o tempo passa rápido , não é?

    Grande beijo,

    Enny

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  2. O Gilberto Mendes (entre tantos, tantos outros) foi um dos compositores que conheci e passei a respeitar e gostar por sua causa. Seu blog é um presente, professora! Beijos saudosos!

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